Coluna | Anseios Crípticos
Obscenidade. Palavrão. Imundície. Quem seria capaz de me revelar a beleza? O que é ser belo, afinal? Não espero nada, a não ser que as palavras que use tenham a capacidade de encher o meu peito, meu corpo oco, para bagunçar e expelir algum resíduo de espírito na bruma da noite.
Posso dizer que o recato sufocou a verve da minha existência, em dado momento. Mas ouvir de meu pai palavras grossas, lombada de volumosa ascendência, como “canalha, vagabundo”, me instigam a viver até hoje.
Estive em dois planos. É bem verdade que convivi muito mais com a família de minha mãe, afeita às convenções, aos moldes da composição regular, de um arranjo familiar igualmente regular e conforme. Contudo, meu pai fez o papel essencial do contraponto, exagerado ou descarnado de princípios esfarrapados.
Ele era pródigo em aquecer o dia ou a noite com dramas quentes, nervosos e nauseabundos, principalmente quando voltava às quedas das memoráveis “farras”; mas também de, como fez certa vez, parar o carro atravessado na rua, embriagado, e, com a doçura de um aventureiro, dormir ao volante e ser acordado com um tapa carinhoso da minha mãe. Ah, ele sempre teve o poder de me colocar em permanente confronto com a verdade dos homens. O que é vero, afinal?
A essência das palavras – que para mim eram inventadas por meu pai, já que nunca as havia ouvido – tinha um quê de secreção ranhosa ou, propriamente, bílis cáustica, no sentido de serem corrosivas para muitos, inclusive para a minha mãe (“Nonato, não fale isso! Que coisa horrível! Na frente das crianças?!”), e, no meu caso, nódoas de pura exultação.
Eu as testava, na escola e em locais de minha convivência, sem saber bem o significado, como é o caso de “pilantra”. Chamei um amiguinho de pilantra, na frente de um pai ciumento e escrupuloso. A resposta veio exatamente do homem injuriado, que declarou: “Seu pai que é um pilantra, pirralho, que não lhe deu a menor educação!”. Aí eu percebi a gravidade das palavras; que não é uma mera palavra, mas um empolado palavrão.
Ao chegar a casa, contei ao meu pai sobre o incidente, e ele começou a rir – e eu pensando que ele iria reprovar a minha afoiteza. Parece que ele se regozijava com a histeria alheia. Era, sim – e depois pude entender –, uma tremenda afronta aos códigos da natureza.
Lógico, meu pai não gostava de cantos calmos, apáticos, e logo bolava planos para “animar o lugar”. Bebia e chorava litros, lembrando de seus amores extraconjugais, com a família reunida num clube de praia. Tropeçava em mesas. Derramava bebidas em garçons displicentes. Agredia, com disparates, alguém que atentasse contra a sua rasa paciência. Foi assim durante a minha adolescência. Foi assim até o começo da minha idade adulta.
E, quando eu estava pronto para proferir, a torto e a direito, essas preciosidades – estando autorizado pela idade e pela consciência –, meu pai resolveu se converter ao cristianismo. A primeira coisa que fez foi me proibir de dizer “turpilóquios” – mesmo no auge da providência, não abandonou as palavras grandes e difíceis.
Agora ele tinha autoridade para determinar que eu seguisse o seu exemplo? O passado estava morte e enterrado, segundo ele. O Nonato de antigamente era só um vulto; “um lapso de uma existência indigna”.
Bem, eu tive de arrumar o meu jeito de empreender a sanha pela perversão dos sentidos, algo que passei a adorar, como a um deus. Comecei a ler avidamente Rubem Fonseca, para atiçar os instintos; com vontade, inclusive, de engolir as páginas ao fim de cada leitura, para ver se, por osmose, conseguiria subverter as células ainda castas.
E tudo isso eu fazia escondido de meu pai, por medo que tivesse sido abduzido por um espectro obsessor e censor. Lia páginas e páginas no banheiro, no quarto – trancado –, ou na casa de um amigo igualmente fã ou adorador da depravação. A leitura conjunta fazia com que eu me deslocasse para outro plano, para a casa dos poetas escrotos, mórbidos.
Aí, o camaradinha Túlio me presenteou com uma sequência insólita de plumas acres para os meus ouvidos de menino. Era Hilda Hilst, que fazia de Rubem Fonseca não pequeno, mas parecer um mero observador da sodomia mundana.
Jamais teria ouvido o seu nome. Jamais soube de sua existência. Se a alcançasse, teria conjugado a infecção de meu pai à dela e, por consequência, à minha. Seríamos um belo carrossel pululante, aspergindo fel por aí; nervos à flor da pele – que linda cena! –, rodopiando e horrorizando a caretice planetária.
Mas, infelizmente, não podia contar com o meu pai, um desumano que passou a rechaçar o seu passado. Devia, então, reunir as minhas lascívias às de Hilda. Seríamos, se vida tivéssemos, juntos, um atropelo, um tremendo desassossego para essa corja bolorenta e inerme. Levaríamos as almas ao desassossego e faríamos que acreditassem mais em Fernando Pessoa que em deus.
Ah, minha profunda Hilda, eu me tornei seu amante antes de o saber. Não pretendo dividir a minha vida com alguém de carne – apesar da beleza do fim e da decomposição, é apenas carne e nada mais.
Sendo possível, se me conceder a loucura, farei como a americana que agora casou-se com Michael Jackson; aliás, com a sua alma ou o que seja isso. Sim, eu me casaria com você, sem papel, sem cerimônias, louvando a obscenidade que me fez crer em sua deidade eterna; a sua bela obscenidade intrínseca me fascina, como nada mais.
Enfim, desisti de morar com os meus pais. Não há meios de desfazer a nossa incompatibilidade. Deixei a felicidade escancarada de minha mãe, por conseguir “converter” o marido, e o meu pai, gozando com os seus suspiros santos.
As minhas tragédias pertencem a mim, à minha deusa de marfim; à bruta necessidade de existir e à minha amantíssima poesia da mortificação.
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Adriano B. Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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Referências
8 belíssimos poemas de Hilda Hilst. Disponível aqui. Acesso em: 26.08.2021.
Hilda Hilst. Disponível aqui. Acesso em: 21.08.2021.
Hilda Hilst: Anos 1950. Disponível aqui. Acesso em: 25.08.2021.
Hilda Hilst e a poesia em estado de urgência. Disponível aqui. Acesso em: 26.08.2021.
Hilda Hilst – Obra completa. Disponível aqui. Acesso em: 23.08.2021.