Coluna | Terra Treva
Com presença assegurada entre os principais nomes da história literária brasileira, a paulistana Lygia Fagundes Telles é autora de uma narrativa breve que se tornou um verdadeiro clássico do horror nacional. O conto “Venha ver o por do sol” foi publicado originalmente em 1988 em uma coletânea de mesmo nome da autora e figura em qualquer lista das melhores obras do gênero produzidas no país. Uma consagração que se justifica, pois Telles constrói em minúcias a narrativa com vistas a um desfecho duplamente aterrador. Identifica-se, na escritura, a intencionalidade do arrepio, tornada evidente pela construção do espaço ficcional, pela tensão crescente entre os personagens e por sutis pistas oferecidas pela narração àqueles que adentram a história.
A estrutura do conto é simples: circunscreve-se ao relato em terceira pessoa de um passeio vespertino de dois ex-namorados, Raquel e Ricardo. Por insistência dele, a moça aceita encontrá-lo muito tempo após a separação, e surpreende-se quando descobre qual é o local escolhido: um cemitério. Mais do que isso, um cemitério abandonado, morto, do qual, conforme promete o rapaz, pode-se ver “o por do sol mais lindo do mundo”. Após uma longa caminhada pela necrópole, durante a qual os dois evocam o passado juntos e o presente afastados, Ricardo por fim conduz Raquel até o mausoléu de sua família; então, atraindo-a para dentro daquela “capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem”, acaba por prendê-la, abandonando-a à própria sorte, o que significa a morte.
Trata-se de um crime passional motivado não apenas pelo amor que Ricardo ainda sente por Raquel, mas também pelo ressentimento do fosso social que se abriu entre os dois. Após o término do namoro, ela se casou com um homem riquíssimo, e o rapaz, que já era despossuído, acabou ficando “mais pobre ainda”. Essa distância entre os dois torna-se clara logo no início do conto, pois, ao encontrar Ricardo em frente ao cemitério, a moça responde ao caloroso cumprimento dele com uma reclamação: “Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes”. A propósito, os diálogos compõem a espinha dorsal do conto, sendo por meio das falas que revelam-se as arestas e as nuances dos personagens e do espaço. São os frequentes comentários indignados de Raquel que expressam sua inclinação para uma generalização preconceituosa: “Ricardo e suas ideias”; “me faz vir de longe para essa buraqueira”; “Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre”. Desde o início da narrativa, ela julga e condena os pormenores do passeio, desprezando-os. Enquanto isso, Ricardo aferra-se à qualidade romântica oferecida pelo mórbido lugar: “o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta”. Se, por um lado, Raquel mostra-se mundana nas frases que profere, o rapaz é profundo em suas reflexões. Antes, não era assim: quando namorados, os dois andavam em consonância, como revela essa afirmação de Ricardo: “Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância… Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra?”. Mais do que um descompasso, impõe-se um distanciamento social entre ambos, que pode ser representado em termos geológicos — ela é superficial e ele, profundo, ou subterrâneo, sendo que pretende carregá-la para as profundezas. É essa sutil intenção, aos poucos revelada ao leitor, o motor da tensão que conduz ao horror.
Ao longo da narrativa, pistas indicam o rumo das sinistras maquinações de Ricardo. “Minha gente está enterrada aí”, revela ele a Raquel ao entrarem no cemitério, para mais adiante afirmar que aquela é a morada de tudo o que importa para ele — ou seja, em breve será a residência eterna da namorada que ainda ama. Também há frequentes menções a “abandono”, tanto da necrópole quanto do mausoléu da família. A pensão horrenda em que o rapaz afirma morar tem, como proprietária, uma “Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura”; as pedras, a propósito, espalham-se pela narrativa, fortalecendo o diálogo com a criatura monstruosa da mitologia. Além disso, em certo momento, Ricardo chama a ex-namorada de “meu anjo”, um vocativo que, no contexto da narrativa, torna-se macabro. E ao oferecer o por do sol a Raquel, ele descreve a paisagem com mórbido lirismo: “a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio tom, nessa ambiguidade”, o que remete ao não-lugar ocupado pelos mortos. Ricardo também se lembra de quando, no passado, levou Raquel para um passeio de barco — uma alusão a outra figura da mitologia grega, Caronte, o barqueiro que conduz ao Hades as almas dos mortos. Há, ainda, os breves momentos em que a expressão do rapaz torna-se diferente, já dando indícios de seu verdadeiro propósito: “inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu”.
Por fim, já próximo do destino, Ricardo faz uma confissão: na infância, acompanhava a mãe ao cemitério enquanto ela levava flores para o pai. Ele ia com uma prima, Maria Emília, (cujos olhos pareciam-se com os de Raquel) de mãos dadas, fazendo planos para o futuro; ela foi, confessa o rapaz, a única pessoa que o amou. E agora mãe e prima estavam mortas, ali sepultadas. Tudo isso parece aproximar Raquel das profundezas de Ricardo, pois ela se mostra subitamente preocupada e compassiva. Aproveitando-se dessa sensibilidade, o rapaz de fato a conduz para baixo quando chegam à capelinha que comporta os restos mortais de sua família. Aqui, maior atenção é dada à composição da atmosfera, que assume fortes contornos góticos:
A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias e antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
A propósito, o efeito do horror em “Venha ver o por do sol” é bastante tributário do espaço ficcional. Ainda que o texto de Telles seja econômico nas descrições, o mero fato de a narrativa desenvolver-se em um “cemitério morto” redobra a potência de locus horribilis do local, no qual isolou-se. O abandono é de fato marcante, com mato solto, trepadeiras e ervas daninhas espalhando-se por todos os lados. As ruínas, tão recorrentes na ficção gótica, ressurgem aqui e ainda podem constituir um sutil comentário social dirigido à condição de grande parte dos cemitérios brasileiros, entregues ao descaso.
É nesse território arruinado que Raquel acaba por descer e soterrar-se, em um desfecho de clímax duplo. Em primeiro lugar, há o choque dela ao descobrir, na inscrição da gaveta mortuária onde estaria a prima de Ricardo, que Maria Emília havia nascido em 1800, tendo morrido “há mais de cem anos”. A essa assustadora descoberta, sucede um baque metálico: Ricardo fechara a portinhola que dava para a catacumba, trancando a ex-namorada lá embaixo. Ante os gritos desesperados de Raquel, ele sai caminhando devagar, apenas proferindo um último e terrível comentário: “Uma réstia de sol vai entrar pela frincha na porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o por do sol mais belo do mundo”. Observe-se que o verbo utilizado é ter, e não ver, conforme o título; essa troca demarca a ironia ressentida do rapaz frente ao materialismo demonstrado pela garota até então. A despeito de seu terrível destino (ou por causa dele), ela possuirá um espetáculo sem precedentes, que nem o atual marido endinheirado seria capaz de proporcionar.
Cabe, ainda, apontar um significativo diálogo empreendido pelo conto de Lygia Fagundes Telles com “O barril de amontillado” de Poe. O intercâmbio dá-se tanto pela via da estrutura — em ambos temos um personagem calculista conduzindo outro para a morte — quanto pelo tema da vingança, passando pela premeditação e pela perversidade de Ricardo. Enquanto em “Venha ver o por do sol” a “isca” é um espetacular poente, na narrativa do autor estadunidense trata-se de um vinho raro; é com ele que Montresor, o narrador-personagem, atrai um antigo inimigo, Fortunato, para o local no qual ambiciona matá-lo, durante uma festa de carnaval na Itália. Há, contudo, uma diferença crucial: a narração em primeira pessoa, artifício recorrente em Poe, por meio da qual Montresor revela desde logo sua intenção de punir exemplarmente o algoz por uma ofensa ocorrida muitos anos antes, e que não é detalhada.
Telles, por outro lado, serve-se do relato em terceira pessoa para manter oculto, do leitor, o medonho plano de Ricardo, desvelando-o aos poucos. Em ambos os textos, a surpresa deflagra o horror, pois, ainda que não seja segredo a punição maquinada pelo narrador de “O barril de amontillado”, causa espanto a forma como ele o faz, lenta e calmamente erguendo uma parede no nicho de uma adega onde prendeu seu inimigo. Da mesma forma, no desfecho do conto da autora paulistana, o vingador afasta-se devagar da catacumba onde prendeu a ex-namorada; em ambas as narrativas, os assassinos saboreiam o desespero de suas vítimas. Assim, pela via poeana, a narrativa de Telles estabelece também um diálogo indireto com “A causa secreta”, de Machado de Assis: em ambos os contos, o horror reside no desvelar da real natureza, tanto do Fortunato machadiano quanto de Ricardo. Contudo, o primeiro é inerentemente sádico e cruel, a dor alheia proporcionando-lhe um prazer inaudito; o segundo é movido pelo ciúme e, em menor medida, pelo ressentimento. Ainda assim, ao reverberarem o relato de Edgar Allan Poe, os dois textos encenam uma forma de horror que, na atualidade, mantém-se em alta na ficção literária sinistra: aquela originada em aspectos monstruosos da natureza humana.
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Oscar Nestarez é pesquisador e escritor da ficção literária de horror. No campo da pesquisa acadêmica, possui Mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e atualmente cursa Doutorado pela USP, tendo como objeto de estudos centrais a obra de Edgar Allan Poe. Como ficcionista, publicou Poe e Lovecraft: um ensaio sobre o medo na literatura (ed. Livrus, 2013), as antologias Sexorcista e outros relatos insólitos (ed. Livrus, 2014) e Horror adentro (ed. Kazuá, 2016), e o romance Bile negra (ed. Empíreo, 2017), além de contos em diversas coletâneas. É também colunista da Revista Galileu, em que aborda temas da ficção de horror, e da revista Vício Velho.