AZIA – VALENTINA BASCUR MOLINA

Coluna das Ausências


Há alguns anos, durante a realização da minha pesquisa de mestrado, conheci a poeta indígena mapuche-huilliche Roxana Miranda Rupailaf e fui simplesmente cativada pela sua poesia falada. Ela transita na sua obra entre o erótico e o onírico. Outorga destinos improváveis para as mulheres das narrativas bíblicas como Evas, Dalilas e Marias Madalenas. As coloca enquanto sujeitos que desejam.

Sinto a sua escrita como algo surpreendente, e me pergunto como a morte e o erótico, enquanto manifestação da vida, podem parecer tão próximos? É o que Roxana consegue expressar nos seus textos.

Em Seducción de los Venenos [Sedução dos Venenos] (2008) a autora trabalha com a figura bíblica da serpente, como o símbolo que integra os elementos da morte e do erotismo. Os capítulos desta obra são nomeados a partir do diálogo com elementos da natureza e da cosmologia mapuche, como Serpientes de Sal, Serpientes de Agua e Serpientes de Tierra.

Em entrevista, a autora comenta que o processo de criação destes novos relatos acerca das figuras femininas, significou também um processo de cura de uma infância com marcas da violência.

Neste jogo entre manifestações de vida e morte, vou tomar a licença de trazer imagens das esculturas da artista mineira Maria Martins (1894-1973) que considero ilustrar perfeitamente a poética de Roxana Miranda Rupailaf.  

However, Maria Martins (1944). Fotografia: Vitor Julian, MASP.

Envuelto en serpientes
sobre la alfombra.
Chuparse la sangre hasta silenciar
los galopes.
Víbora de meterte lengua
con veneno.

Me desparramo en tu cama.
Busco tu lengua en lo oscuro.
Monto sobre las uvas que abres.
Te atrapo en los cabellos
te enredo
te cubro
hago un manto
para que tú,
busques la leche
y los venenos.

Trecho do poema La Seducción de los Venenos.

Cobra Grande, Maria Martins (1942). Fotografia: Vitor Julian, MASP.

Na sua obra mais recente, ainda inédita, Roxana se aprofunda nos jogos do amor e da morte estabelecendo relações entre o erótico e o boxe, como uma disciplina que envolve tensão, movimentos contidos, a autodefesa e o ataque.

A seguir, apresento alguns fragmentos do seu livro “Kewakafe”, que em Mapudungun significa “lutador”:

La vida no es más que un par de golpes contra la pared
O contra el cuerpo de otro
que es uno mismo
unas manchas de sangre en la cara
en las manos
en la cama
Un pronunciar tu nombre mientras caigo
Y caes derrotado del espejo a los abismos

(…)

Para golpear hay que bailar un poco con el oponente
mirar su rostro mientras giras
tratar de romper esa hermosura
Medir con los brazos el desastre
Hablar poco
Girar y mirar al oponente
Estar atenta a la posibilidad del golpe
Rechazar todo contacto
Para golpear no hay que perder de vista al contrincante
Hay que girar con él en la rueda de la vida sin amarlo

O impossível, Maria Martins (1945). Fotografia: Vitor Julian, MASP.

Percebo as imagens de Maria Martins como um belo lembrete sobre o corpo como possibilidade de âncora e bússola, que nos guia acerca dos lugares que desejamos habitar. O corpo avisa, o corpo dá sinais. É mais do que uma frase clichê. Os sinais, na verdade, os alarmes do meu corpo, me avisaram quando a vida tinha ficado azeda demais, quando a azia parecia ter virado assunto crônico.

Tempos atrás recebi uma carta de uma remetente secreta que dizia: “Fuja sabendo que a boca do seu estômago merece a vida que você quer ter” (M.P.P.).

____________________
Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
(Imagem Alvaro de la Fuente)