Coluna | Campo de Heliantos
Não é raro encontrar na Amazônia histórias que contam sobre homens que se transformam em animais ou animais que se transformam em humanos. São, geralmente, narrativas de antigas gerações, passadas para filhos e netos, os quais perduram pelo poder de envolvimento tanto do próprio espaço, quanto da própria forma com que são contadas. Ao redor de uma fogueira, dentro da floresta, ou à beira de um rio, o ambiente se torna fértil para a imaginação e tudo o que é dito ecoa nos elementos da natureza, como forma de dar veracidade aos contos. Este tipo de literatura, em que há uma valorização da expressão oral e, sobretudo, da capacidade de observar o meio e transformá-lo em expressão “poética” ficou por muito tempo relegado ao segundo plano e fora das pesquisas da academia.
Deu-se para as lendas um papel menos importante do que o da Literatura Clássica, um lugar de entendimento mais raso, em que não há o imbricamento intelectual exigido, de camadas que se desdobram iguais se observam na Literatura Canônica. O fato é que essas exigências acadêmicas apenas refletem um movimento de cada vez mais “humanizar” o ser humano e afastá-lo de sua interação com a natureza. A ideia do homem controlar tudo e todas as coisas não permite o entendimento dos animais reais e imaginários, encontrados nas lendas, por uma percepção irracional e menos mental do que julgamos necessária para evoluir no planeta terra.
Como entender que o Urutau, uma ave que mescla sua cor a cor do tronco das árvores e possui um canto capiongo de entristecer a mata, foi antes de ser ave, uma mulher indígena, que por não suportar a dor da morte de um amor, transformou-se em pássaro e canta sua dor para lua na madrugada. A lenda do uruvati, quá quá, mãe da lua, traz uma ideia muito direta de uma coisa pela outra, ou seja, a mulher que virou pássaro, sem uma mediação que humanize a história. Espera-se que a mulher tenha sentimentos, percepções, reações que simulem a ave, mas não que se transforme em ave, justo por perder sua condição humana, considerada mais complexa e valorizada.
Então, viver a experiência do animal tal qual o animal é, nos colocaria numa posição inferior, e talvez por isso as lendas não tenham subido a escada de reconhecimento literário. Ou ainda, por puro desconhecimento da cultura e da história da região Amazônia, que trata o espaço da floresta ainda como lugar exótico de contos fantásticos, sem perceber que nada tem de fantástico ou exótico, que são apenas culturas distintas das culturas viciadas e concretas da cidade. Nesse ponto, a literatura ainda está muito longe de adentrar as profundezas da floresta, de absorver seus subsídios como matéria de criação. A dificuldade em mediar o real e o imaginário prefere colocar as lendas brasileiras em posições menos valorizadas e transformar a escrita da Amazônia em realismo mágico.
É preciso dizer que o conceito de lenda, conforme aprendemos na escola, não existe na floresta. Na verdade, são elementos do cotidiano amazônico que possuem a mesma veracidade dada às notícias de jornais. Não há uma transposição para o lendário, para o impossível, para o não real. Todas as experiências são complementos da interação homem e natureza e assim merecem a valorização literária que a elas são designadas pelos habitantes da floresta. É uma outra vertente de entendimento e que possui tantas camadas de percepção e desdobramento tal qual as lendas que se transformaram em clássicos da literatura mundial.
É o caso de “A metamorfose”, de Franz Kafka, que descreve a história do caixeiro viajante Gregor Samsa, um homem que abandona seus desejos para sustentar a família. Em certa manhã, Gregor acorda metamorfoseado num inseto monstruoso. No texto, Kafka questiona não somente a identidade humana, mas também o desconforto social, um ponto importante na construção de uma literatura consagrada. A forma com que a narrativa vai enrodilhando o leitor e o envolve não é muito diferente do que se vê ao contar a lenda do urutau, da cobra-grande, do boto.
As histórias da Amazônia possuem também muitas camadas de interpretações e entendimentos, sobretudo, no que diz respeito às interações do homem com a natureza.
No Brasil, o livro “A paixão segundo GH”, da escritora Clarice Lispector, poderia muito bem ser considerado uma lenda em que a coisa matéria animal barata é o portal para outras formas de se considerar o ser humano e o universo, o que igualmente acontece nas lendas amazônicas. A grande diferença das lendas contadas ao redor da fogueira e dos livros canônicos está na forma como chegam ao leitor. A lenda é transmitida oralmente, enquanto que os livros “A metamorfose” e “A paixão segundo GH” possuem além de uma composição estética e várias técnicas literárias, a produção editorial da indústria do livro, já as lendas atingem apenas aqueles que pretendem desvelar o Brasil, e tomam coragem para entrar no centro do mundo – Amazônia.
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Nota da autora: Aos artistas interessados em estabelecer interlocuções artísticas com a Amazônia, estão abertas as inscrições para a IMERSÃO ZOOPOÉTICA – Corpo: Animal em Extinção, uma parceria entre a Residência Artística Campo de Heliantos (@campodeheliantos), o projeto Tomar Corpo (@tomarcorpo) e a Editora Urutau (@editoraurutau). Para mais informações, faça sua pré-inscrição aqui.
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Graziela Brum idealizou e coordena o Projeto Literário Senhoras Obscenas. Vencedora de dois concursos ProAc em São Paulo, com Fumaça (2014) e Jenipará (2019) – que é o primeiro romance de uma trilogia sobre a Amazônia -, também publicou Vejo Girassóis em Você (Lumme), de prosa poética.