Coluna | Anseios Crípticos
Na última sessão, a psicóloga perguntou se eu me ligo em detalhes desde menino. (Preciso explicar que estamos numa espécie de atividade regressiva, como fazem os psicanalistas; só que, na verdade, é sonhar acordado, ou realidade e sonho andam lado a lado).
Na hora, não surgiram lembranças específicas. Certamente fugi à pergunta, balbuciando palavras, numa tentativa inútil de tapar o buraco de um silêncio corrosivo que nos precipitava em polos opostos. [Bernardo é quase uma árvore / Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe / E vêm pousar em seu ombro]1.
Logo tornei ao local; pés no chão. Lembrei-me dos bichinhos e da natureza que povoaram a minha infância. [Deus disse: Vou ajeitar a você um dom: Vou pertencer você para uma árvore. E pertenceu-me]2. Lógico, como acontece a toda criança solitária, sempre me chamaram a atenção. (Na sutileza detectam-se as nuances do colorido arranjo, o sentido do céu e dos ventos; o amontoado que precisa da unidade para ser o todo).
O que quero dizer é exatamente sobre, por exemplo, a divindade das formigas; seres que, depois descobri, podem ser alados ou significantes tanajuras – dependendo dos contornos do tempo.
Eu tinha uma fixação às mínimas criaturas que andavam em bando, como se segurando a uma corrente; uma corrente de vida abundante e coesa. Se Socorro metesse a vassoura no meio, na intenção de conter uma suposta infestação, eu me enfiava entre suas pernas e me prendia feito um macaquinho, para que ela não operasse nenhum mal. No fim, por obra de milagre, ela me atendia, contrafeita. “Ô menino sem noção!”.
Para completar, meu pai, alimentando a minha introspecção [Uso a palavra para compor meus silêncios]3, achando bonitinha a minha admiração, incentivava o meu ofício de “observador de miudezas”. Chegava, muitas vezes, com aves e roedores para criarmos. Não era nada fácil; minha mãe vinha com sangue nos olhos, prestes a explodir, alegando que na casa não cabiam mais bichos além de nós. (Uma das características que tenho, similar ao comportamento do meu pai, é ser persistente nas ideias). Ele ouvia, com ouvidos moucos, e simplesmente acatava a sua (a nossa) vontade, de aglomerar o recinto.
Aí, com uns dez anos, inventei de fazer um zoológico. Já tínhamos cachorro, gatos, preás e pombos. Com isso, podia-se declarar que o zoológico urbano existia. Mas, para diversificar a trama, ainda que fosse preciso ouvir poucas e boas de minha mãe, eu e meu irmão demos um jeito de capturar pequenas naturezas que rondavam a casa; eram calangos, borboletas [Borboletas me convidaram a elas. O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu]4, besouros etc. e tal.
Coincidentemente, apareceu um soim ou sagui, cego, no quintal, abandonado por sua trupe vadia. (Decerto não conseguiu acompanhar o cortejo). Era filhote e indefeso. Assustava-se, só vendo, com tudo.
Nos primeiros dias, sentíamos a dificuldade sobre-humana de alimentar o pequenino. Dávamos pão embebido em leite e biscoitos de maizena. Minha mãe dizia que era um crime, mas, para mim, crime mesmo era deixar aquela criaturinha à sorte de um carcará aventureiro – sim, naquelas bandas, rondavam tipos miúdos de aves de rapina, que davam rasantes e levavam bichos, como pintos e calangos, pelas patas.
Eu estava disposto a vencer a batalha, cuidando dia e noite do fraco soim. Mas, numa dada manhã que fui à escola, a moça que trabalhava em nossa casa disse – talvez mancomunada com minha mãe – que o bichinho havia se soltado e “ganhado o mundo”. Mais tarde, para tentar conter o meu choro, minha mãe alegou que a sua “mamãe” o havia vindo buscar, e que “contra a natureza não se pode fazer nada”. Nem assim eu me convenci do maldito destino.
Para aplacar o calor da desordem, meu pai resolveu trazer outros bichinhos: cerca de dez peixes japoneses, num aquário mediano, que, perceptível, estava superlotado.
Com a novidade, mudei o sentido da prosa. No entanto, quando caía a noite, nesses dias confusos, o pensamento sempre corria como um Macunaíma, Norte a Sul do país; como um rei à procura de seu súdito desterrado da vida (da minha vida).
Numa tarde, sem ver para quê, caiu-me um sentimento de medo, pesaroso, como se uma desgraça houvesse ocorrido. Chovia e, daí, supus que o pequeno sagui estaria em sérios apuros, se tivesse se perdido de sua mamãe. Fui ao quintal e despejei um bocado bom de bananas e outras frutas, com o intuito de atrair o bando forasteiro. A prece serviu mais que o presente dado, visto que, em pouco mais de duas horas, estavam lá, tentando se limpar do atoleiro causado pela chuva, reunidos numa pequena cabana disposta pela acomodação da natureza; uma ruma de folhas de um coqueiro, um adequado e legítimo abrigo.
Via-se o pequenino soltando assobios agudos de felicidade, zanzando entre o dorso de sua mãe e os outros amiguinhos. Eu que tive inveja daquela liberdade inocente, descomprometida, sabendo que, pouco mais, iria à escola para ser encerrado a uma cadeira de braços rotundos – como os cercados que fiz para os bichos do meu zoológico. [Em toda a minha vida só engenhei 3 máquinas / Como sejam: Uma pequena manivela para pegar no sono. Um fazedor de amanhecer para usamentos de poetas / E um platinado de mandioca para o fordeco de meu irmão]5.
Bem, se foi essa a finalidade, de me fazer repensar o meu amor sufocante de prender os bichinhos para tê-los colados a mim, cumpriu o seu propósito. E, assim, um impulso natural me fez “carregar água na peneira”6 e escrever, pintar e desenhar.
Enfim, minha mãe se contentou em ver em mim um minipoeta. Ajuizava, sem dúvida, que seria somente mais uma brincadeira de criança. [A mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta! Você vai carregar água na peneira a vida toda]7.
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco,
os besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa.
Ele me rã.
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos8.
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Adriano B. Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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1 Trecho do poema “Bernardo é quase uma árvore”, de Manoel de Barros.
2 Trecho do poema “Deus disse”, de Manoel de Barros.
3 Trecho do poema “O apanhador de desperdícios”, de Manoel de Barros.
4 Trecho do poema “Borboletas”, de Manoel de Barros.
5 Trecho do poema “O fazedor de amanhecer”, de Manoel de Barros.
6 Trecho do poema “O menino que carregava água na peneira”, de Manoel de Barros.
7 Trecho do poema “O menino que carregava água na peneira”, de Manoel de Barros.
8 Poema “Mundo pequeno I”, de Manoel de Barros.
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Referências
AIDAR, Laura. Conheça 10 poemas incríveis de Manoel de Barros para crianças. Disponível aqui . Acesso em: 28.09.2021.
CAMILO, Camila. Manoel de Barros: vida e versos para todas as idades. Disponível aqui. Acesso em: 27.09.2021.
ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL. Manoel de Barros. Disponível aqui. Acesso em: 26.09.2021.
OLIVEIRA, Ana Clara. 6 poemas de Manoel de Barros para ler com as crianças. Disponível aqui. Acesso em: 28.09.2021.
UZÊDA, André Luís Mourão de. Manoel de Barros e o último adeus de Bernardo. Disponível aqui. Acesso em: 28.09.2021.