As consequências dos nossos nãos podem ser devastadoras.
Recentemente li A Vegetariana1, da autora sul-coreana Han Kang e percebi que talvez, a questão da carne em si, seja irrelevante.
Penso que, poderia ter sido qualquer outra coisa.
A questão central, para mim, foi a escolha. Foi ousar se recusar a continuar fazendo algo que evidentemente a perturbava. Foi o fato de colocar um limite, de forma gentil, mas firme.
Achei uma espécie de resistência não violenta.
Não foram as consequências de recusar a carne que a levaram à loucura. Foram as retaliações da sua escolha. Ela precisava ser punida, corrigida, internada, estuprada.
A Vegetariana trata-se sobre as retaliações.
A história da protagonista me fez pensar naquelas coisas que simplesmente aceitamos, que não escolhemos, que outros decidem por nós, ou que, fazemos sem questionar.
As nossas vidas compulsórias.
O olhar do marido da personagem principal mostra precisamente a expectativa que se tem a respeito de uma suposta mulher comum: realizar o trabalho reprodutivo, assumir que ela cumprirá com as atividades de cuidado. E a recusa deste trabalho, gerou consequências catastróficas.
Eu simplesmente adoro quando as narrativas surreais me parecem tão verossímeis. A protagonista me pareceu tão humana na sua loucura, na sua firmeza, na sua teimosia de levar a sua decisão até as últimas consequências.
A sanidade parece ter bordas tão frágeis.
Fui vegetariana por alguns anos e, como tantas coisas na minha vida, foi uma das escolhas que simplesmente aceitei, automaticamente, porque outros achavam que era o melhor. Para quê brigar, para quê discutir, para quê levar adiante as minhas escolhas? Seria desgastante demais, seria pouco prático, no fim das contas.
Anos depois percebi que nunca quis ser vegetariana. Que a minha escolha tinha sido totalmente automática, sem reflexão, apenas uma aceitação do outorgado pelo outro.
Percebi que nunca quis ser vegetariana, quando me dei conta que tinha perdido o prazer de realizar, talvez, a nossa atividade mais vital: Comer.
Hoje em dia como absolutamente qualquer coisa posta à mesa. E a minha comida favorita são os crudos: carne magra crua cozida no suco de limão e acompanhada de torradas, molhos e cerveja gelada. Não como todo dia porque seria inviável para o meu bolso de escritora.
A questão da carne em si, é irrelevante.
Quantas escolhas são feitas através do olhar do outro?
Quantas são feitas pelo medo das represálias?
Quantas são contidas, interditadas, censuradas, pela adequação ao outro?
Conhecemos a protagonista da história de A Vegetariana, através da ausência da própria voz.
Apenas a conhecemos nos seus delírios e pesadelos. A sua voz só aparece nesses momentos.
Foram as retaliações que a colocaram num lugar de mulher falha.
E o lugar de mulher falha a enlouqueceu.
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1 Yeonghye, a protagonista, decide parar de comer carne de maneira súbita, provocada por pesadelos e sonhos aterradores. Este ato, aparentemente simples, desencadeia uma série de reações ao seu redor. A história é narrada a partir da visão do marido, depois do cunhado, e finalmente, da irmã. Apenas conhecemos a voz da protagonista nos seus delírios.
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Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.