Coluna | Sentido
Todos os dias eu cruzo a ponte Maurício de Nassau, indo e voltando. Justo naquele, depois de um bom tempo esquecido de sua existência, voltei o olhar para o café no cais do Imperador e soube que ali tinha um encontro marcado;
ali.
Umas quatro e dezessete da tarde.
Dois minutos depois, sentado a uma das mesinhas, pedi uma cerveja, olhei as águas do Capibaribe, o antigo palácio da Alfândega, agora shopping, do outro lado, e esperei. Percebi como, embora o movimento do rio seja lento, o de suas pequenas ondas é veloz. Mais transitórias que efemérides. Frenéticas metáforas da condição humana. Iam ali todos os fantasmas da história do Recife, em alegre procissão ao sol onipresente dos psicotrópicos. Carnaval dos mortos. Eu era uma onda testemunhando ondas. Não é isso o universo? Interações de ondas. Ondas entravam pelos meus olhos e geravam ondas em meu cérebro.
Agora era esperar o inesperado.
Duas moças chegaram e sentaram à mesa numa diagonal próxima, no mesmo terraço debruçado sobre o rio. Uma tirou várias fotos da outra com a paisagem ao fundo enquanto eu escrevia essas linhas (digitava-as no celular).
Não houve nenhuma interação depois. Passou um catamarã com turistas, só o notei quando buzinou fanhoso e fanfarrão ao passar sob o arco baixo da Maurício de Nassau. As pontes do Recife são baixas, as águas mornas, o fundo dos rios macio. Pontes inadequadas ao suicídio. Recife não é Praga, Recife não é Londres. Recife não é a Veneza Brasileira, Recife não é a Florença dos Trópicos. Recife. Repita até deixar de fazer sentido, como quando se olha demais para um objeto. É quando se começa a apreendê-lo. Bata até ficar áspero. Não a clara em neve, o sururu em pó. Cortante. Recife é Recife, seu próprio enigma embrulhado nesse aperto de igrejas, aqui, de palafitas, ali.
Tanto que garças, não corvos e gaivotas, voavam contra e a favor das correntes de ar, às vezes tão detidas pelo ar adverso que eu as retinha na mão, seu sofisticado tórax, e as rearremessava como aviões de papel ou aeroplanos divinos. Desapareciam quando sobrepostas às partes brancas do edifício neoclássico com toques barrocos que parece um bolo de noiva quadrado recoberto de marshmallow artisticamente disposto, uma caixa de presente de casamento recém-abandonada na sarjeta, com fitas, rendas e laços, ainda branca, já vazia: o edifício é hoje oco como uma coroa dentária, uma casca de ovo trepanada, um crânio sugado por um capelobo.
As garças ressurgiam, materializavam-se contra os telhados da igreja Madre de Deus vista de costas, o paço da Alfândega com suas janelas e seus óculos, suas esculturinhas humanas, ao lado a livraria Jaqueira, esta uma caixa de presente mais antipática, dentro da qual eu estivera na véspera lendo num outro café o primeiro capítulo de Pantaleão e as visitadoras e um conto de Sylvia Plath que falava em escapar das armadilhas e distrações sutis da vida para concentrar-se no que importa: escrever. Algum mineiro do apocalipse disse que era preciso escapar da armadilha sutil da escrita para concentrar-se no que importa: viver. Distraidamente, de preferência. Mentira. Isso, acrescento, emulando a espirituosidade daqueles quatro amigos católicos. Mera literatura. Porém Paulo Mendes Campos com efeito escreveu uma crônica sobre Recife, sua brisa onipresente, esta ou aquela que eu sentia e sinto e sentirei onde estiver, posto que onipresente, encruzilhando tempos, pronomes. Num terraço de café.
Num terraço de café, pra ser sincero também no cais do Imperador, projetava-se em mim a sombra da sensação de Vermeer quando olhava para Delft do outro lado do rio antes de pintar a vista desta sua cidade, cidade mais sua que ele dela. Ao escrever estas aquelas linhas, tive a sensação de pintar a paisagem. Recife. A voz e o jeito de recitar de Manuel. Do velho Manuel velho.
Recife. Como os telhados da Madre de Deus vista de costas vistos em perspectiva eram interessantes. Entre suas torres pairava uma nuvem paradoxal: a um tempo daquela vaga translucidez e perfeitamente circular. Estaquela lua prematura e grávida me lembrou qual era meu encontro marcado: um cometa que passaria perto, rasante, arrastando a entre ígnea e gélida cauda, visível e até vível e até vivível a olho nu daquele terraço, daquele cais, àquelas horas, naquela suspensão do luscofusco, que a meu ver admite tanto hífen quanto ziguezague. Não se divide assim o que é fluido e confluente e difuso, não se quebra assim o que descreve trajetórias tão sinuosas, ainda que pareça um hífen alado. Cometa. Ah. Ah, Halley. Anunciado num canal do youtube, mas essa informação só será romântica daqui a dois séculos, como os carros e os ônibus. Automóveis numa canção de Caetano.
Percebê-lo, perceber essas coisas, entes, era como pintá-los. Acrescentava pinceladas. As janelas dos sinos tinham forma de sino. Um dos óculos do paço, o sexto da esquerda para a direita, refletiu e circunscreveu o sol, olho megalomaníaco, paroxístico. Quando terminei de descrever a conjunção, já se desfizera. Nada do cometa. Passaram nove garças voando acima de mim, tive tempo de contá-las e lembrei de Borges dizer que se não podemos contá-las ou Deus existe e elas têm número ou o número de garças é impreciso, intrinsecamente impreciso. Chinesias que o argentino colecionava como vasos decorativos da eternidade, do corredor da morte. Mera literatura. Filosofia é um tipo de literatura que finge que não se sabe doida, como Dom Quixote?
Literatura. Não sou esse animal literário todo que aqui dou a entender, mas isso não é mentira, é também literatura: pinto-me. Faço trocadilhos de “ver-me” com “Vermeer” e digo que faço sem fazer para que soe de bom gosto. Estratageminhas. Chamar macete de estratagema e aplicar um aliciante diminutivo. Aonde me levará esse negócio de ser escritor? A lugar nenhum. Já trouxe. Não é negócio. É coisa. Voar é um desistir.
O sol refletido no óculo do paço deixou a minha vista cheia de manchas redondas, vermelhas, roxas, azuis, que sou incapaz de contar. Por existirem em mim, elas têm ainda assim um número definido? Ou mesmo em mim pode haver o desnúmero? Sou quântico? Devo ser. Também não sei quantos autores ecoo. Quase lembro um, aqui muito próximo dessa frase. “Devo ser”. Nunca o isolarei. Ficará sem hífen.
Como sempre, não chegou ninguém, quem chegou não me viu, não passou cometa, não haveria nenhum encontro, a não ser com a noite. Mas a noite não encontra, engolfa. Não havia encontro marcado algum. Não há encontro marcado algum. Tudo é dissoluto. Encontro é arte. Pintei Vinicius debruçado sobre a amurada e seu copo de uísque, cigarro na mão no ar, naquela mesa quase em frente, no limiar das águas, ao lado um insólito João Cabral, copo de uísque, cigarro, quem diria. Ritmo. Eu diria “ritmo”. É preciso encontrar um. Aprender com essas águas a ser lento e veloz, calmo e afanoso. Fernando Sabino desata o roupão como um presidente corta uma fita numa inauguração, como um maratonista vitorioso num filme às avessas. Atiram-se na água e vão nadando e ficando coloidais e virando ondas, virando ondas, virando ondas. João Cabral dá mais uma tragada e olha.
Nuvens fantásticas se erguiam ou conflagravam em volta do edifício Chanteclair, o de marshmallow, acesas como lamparinas em forma de quimeras. Por um processo alquímico a nuvem circular se transmutara em alguma pedra ou deserto redondo e aéreo, fedorento cadáver de esfera. Não era pra eu já ter dito “lua”. Satélite. Perdoai.
Sinto a necessidade de me retirar para a vida real. Me jogar, vou me jogar no Capibaribe do real, águas impróprias para o suicídio. Quero algo, alguma febre que me acometa. Passa na calçada uma moça alta de longos e esvoaçantes cabelos ruivos. Ela me olha, fulgura ao último sol, comenta alguma coisa com as duas amigas, que riem, e ri alto e para o alto. O presente se manifesta como numa mesa redonda. A vida existe, forma dupla espiral com a ficção. Uma sem a outra, desexiste. Qualquer coisa, algo em mim diz: cometa.
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João Paulo Parisio (@jpparisio), nascido no Recife em 4 de setembro de 1982, é autor de Legião anônima (contos, 2014, Cepe editora), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe editora), Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, editora Patuá) e Retrocausalidade (romance, 2020, prêmio Pernambuco, Cepe editora), obras que o situaram entre os expoentes da literatura brasileira contemporânea. Apontado pelo crítico José Castello como “um dos principais nomes da nova geração de narradores brasileiros”, tem ainda textos veiculados em revistas, jornais e sites especializados.