LOVE O’LOVE – VALENTINA BASCUR MOLINA

Coluna das Ausências


Love O’Love de Nina Simone não para de tocar no reprodutor. 

Uma e outra vez. 

Tento escrever numa cozinha quente, calor seco, no meio de panelas se batendo. 

“Love will take me straight to my grave” [o amor vai me levar direto pra minha cova] 

Ressoa na caixa de som, ressoa na minha caixa torácica.

Afetos que se confundem com a morte, tudo envolvido num ar de violência silenciosa, como o gás aberto na cozinha. 

“Sos un burro, Onetti, sos un perro, sos una bestia. Y me fui”, escreve Idea Vilariño, poeta uruguaia. 

Leio esta frase e dou risada. 

Aquela risada maldita, risada nervosa que dá coceira na boca do estômago. 

Esta citação aparece na descrição do livro Poemas de Amor (1957), que Idea escreveu durante a separação com Juan Carlos Onetti, também escritor.

O livro contém escritos de amor, de des-amor, e de tal vez, não-amor.

Muitos deles, ligados a aspectos domésticos e cotidianos, que poderiam ter acontecido no apartamento de qualquer um de nós, como Un huésped [Um hóspede] (1960), e Ya no [Já não] (1958).

Un huésped

No sos mío
no estás
en mi vida
a mi lado
no comés en mi mesa
ni reís ni cantás
ni vivís para mí.
Somos ajenos

y yo misma
y mi casa.
Sos un extraño
un huésped
que no busca no quiere
más que una cama
a veces.
Qué puedo hacer
cedértela.
Pero yo vivo sola


Um hóspede

Não és meu
não estás
ao meu lado
na vida
não comes nesta mesa
nem ris aqui nem cantas
nem vives para mim.
Somos alheios
tu
e eu mesma
e minha casa.
És um estranho
um hóspede
que não busca não quer
mais que uma cama
às vezes.
Que posso fazer
concedo-a.
Mas eu vivo só.

*

Ya no

Ya no será
ya no
no viviremos juntos
no criaré a tu hijo
no coseré tu ropa
no te tendré de noche
no te besaré al irme
nunca sabrás quién fui
por qué me amaron otros.
No llegaré a saber
por qué ni cómo nunca
ni si era de verdad
lo que dijiste que era
ni quién fuiste
ni qué fui para ti
ni cómo hubiera sido
vivir juntos
querernos
esperarnos
estar.
Ya no soy más que yo
para siempre y tú
ya
no serás para mí
más que tú. Ya no estás
en un día futuro
no sabré dónde vives
con quién
ni si te acuerdas.
No me abrazarás nunca
como esa noche
nunca.
No volveré a tocarte.
No te veré morir.


Já não

Já não
Já não será
já não
não viveremos juntos
não criarei teu filho
não coserei a roupa
não te terei de noite
não te beijarei ao ir-me
não saberás quem fui
porque me amaram outros.
Eu nunca vou saber
por quê nem como nunca
nem se era de verdade
o que disseste que era
nem quem foste
nem quem fui para ti
nem como houvera sido
viver juntos
querermo-nos
esperarmo-nos
estar.
Já não sou mais que eu
para sempre e tu

não serás para mim
mais que tu. Já não estás
em um dia futuro
não saberei onde vives
com quem
nem se te lembras.
Não me abraçarás nunca
como essa noite
nunca.
Não voltarei a tocar-te
Não te verei morrer.

(Tradução de Denise Rogenski)


Volto pra Nina.

Sempre me ronda a mesma equação: amor e morte. Uma muito perto da outra.

Não há nada romântico nesta equação, mas alguém precisa resolvê-la, cortar o gás silencioso da cozinha, sabe?         

Porque, talvez ninguém consiga se libertar sozinha. Precisamos de infinitas redes visíveis e invisíveis para nos libertar.

Mas, gosto de pensar que existe uma esfera íntima que, ainda submersas no oceano da morte, nos puxa para a superfície da sobrevivência.  

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Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.