O SOM O S – THAIS LANCMAN

Coluna | A Resenhista


 

Ontem no metrô um desses meninos que passa vendendo bala e pedindo ajuda por meio de uma filipeta de papel que ele entrega aos passageiros veio da ponta do vagão pedindo “licença” para cada senhor ou senhora.

As pessoas estavam meio quietas então de longe ouvi ele se aproximar. Peguei o papel com um aceno, entre outros tantos que faziam a mesma coisa, ou recusavam de uma maneira preguiçosa, pouco gentil, automática.

Tinha algo de efeito Doppler naquela abordagem, que veio chegando, aumentando de volume:

Cç SS
Cç SS
Ce SSe
Cen SSen
Cens Senh
Cença Senhor
Cença Senhora
Cens Senh
Cen SSen
Ce SSe
Cç SS
Cç SS

Quando eu desci, ele desceu junto, recolhendo apressado os papeis. Acho que não vendeu nada. E eu ainda pensava nesse Bat Macumba dos esses, do som sibiliante (que onomatopeia maravilhosa a palavra sibilante). Pensei muito nesses esses, mais do que no papel que ele entregava enquanto os pronunciava. Pensei nos músicos do metrô, cada vez mais frequentes, e na música daquele som que se sobrepunha a tudo que ele fazia. Era como se, em vez de um repente ou um rap que mexe com os passageiros, eu tivesse ali uma apresentação de 4’33’’, do John Cage.

O esse que diferencia os cariocas de outros brasileiros, herança portuguesa. O esse que leva tantas pessoas a sessões com uma fonoaudióloga (uma profissional que não se restringe a curar vozdepatologias). O esse que encerra a pronúncia do meu nome.

Quando o esse tomou o metrô, pensei no esse tomando o mundo. Um som presente em praticamente todos os idiomas, exceto o tâmil, falado no Sri Lanka e em Singapura, e em línguas faladas em ilhas do Pacífico como Havaí, Taiti e Nauru.

O som o esse poderia bem ser o hino da suposta revolução globalista, um esperanto minimalista, mas era só pobreza mesmo, cansaço, resiliência, tudo isso e mais um pouco. São Paulo é como o mundo todo – exceto alguns paraísos muito distantes.

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Thais Lancman é uma escritora paulistana nascida em 1987. Publicou os livros Palito de fosfeno (2014, Reformatório) e Pessoas promíscuas de águas e pedras (2021, Patuá), além de contos e ensaios em coletâneas no Brasil, Alemanha e Áustria e em revistas impressas e online. É doutoranda em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, dá aulas e trabalha como ghost writer