DEPOIS DE ASSISTIR AO BAILADO DO DEUS MORTO EM UMA NOITE DE VERÃO – thais lancman

Coluna | A Resenhista


(Trecho do livro “Meu ano Flávio de Carvalho”, recém-lançado pela Folhas de Relva)

Não entendi nada, adorei. Uma resenha recorrente à época.          

Como Nick Cave, as coisas só me interessavam enquanto eu não as entendia. Depois, iam perdendo a graça até evaporarem e serem substituídas por outras sentenças crípticas. Como o meu suor, que havia evaporado, e agora surgia novamente, enquanto andávamos para o bar em que ocorreria, em instantes, a minha festa de despedida. Mas o bar estava fechado e precisamos mudar a festa às pressas para outro endereço.

Enquanto andamos até um ponto indefinido simplesmente para caminhar um pouco e esperar o Uber longe do bar de portão baixado e luzes acesas (estranho), lembrava daquilo que tinha acabado de assistir. Um manifesto antigo contra a caretice, agora não era transgressor ou careta, era de fora desse tempo (como tudo que Flávio de Carvalho criara), do tempo de pegar um avião para Portugal, com data inexata de volta e uma vaga ideia do que fazer por lá.

A peça tinha matado um Deus que não sabia qual, só sabia que havia sido substituído por uma mulher, uma mulher de muitas faces, expressões. Era um clichê imenso, talvez não fosse em outros tempos, talvez já fosse e pensar que não era não passa de idealização do presente por meio do menosprezo ao passado.

Mas como menosprezar o passado se foi ele quem matou Deus na minha frente e graças a ele eu pegava as partes de Deus e enfiava na minha mala, pensando em como aproveitá-las no futuro a um voo de distância? Cheguei na festa de despedida antes de alguns convidados, avisados rapidamente da mudança de local. Ganhamos um balde de cerveja e ele me pareceu ideal para imitar a máscara dos bailarinos da peça. Ri e manifestei a minha ideia.

Balde na cabeça, respingos de água gelada. O deus é morto, tantantan-tantantã. O bailado desconjuntado, para quem estava enfiada no balde (eu), era uma imitação perfeita do que acontecera horas antes no teatro e aconteceria no dia seguinte e mais algumas vezes nas próximas semanas. Ou não seria nunca igual, e a tentativa de reproduzir fielmente era uma busca inútil, dos atores, em relação ao original de 1933, e minha. Quando tirei o balde da cabeça e ninguém parecia entender o que eu tinha feito nem por quê, minha expressão já era outra, molhada e franzida.

Quando cheguei em casa, já era Dia de Iemanjá, dois de fevereiro. Meus amigos deviam estar indo cada um para a sua cama, pensando no dia seguinte idêntico ao que terminava ali, tirando a minha despedida, e eu fazendo as malas, preparações para um dia peculiar. Dia de cruzar o oceano, na contramão.

No aeroporto, fui avisada de que minha mala, um tijolo vermelho de tamanho descomunal, tinha peso além do permitido. Precisava retirar uns tantos quilos de tralhas de dentro para que ela ficasse de um peso autorizado, pagando pelo excesso de bagagem, o que custava uma soma de dinheiro inconcebível para eu gastar ali.

Apoiando a mala de maneira improvisada em um canto do aeroporto próximo a um balcão fechado de outra companhia aérea para usar a balança desocupada, comecei a fazer uma trouxa de itens descartados com um lençol. Roupas, livros, toalhas, uma câmera fotográfica digital, jaqueta de couro, botas.

Fiquei pensando no boi de Flávio de Carvalho – o deus é morto tantantã –, em suas partes sendo aproveitadas. O chifre para não sei o quê, o couro para não sei o que lá, mocotó, guam, stick. E minhas partes ali expostas, amarradas no lençol. Como se eu fosse a minha enorme mala vermelha, seguia feito carcaça vazia. Mas, quando vi o quanto estava prestes a carregar e como aquilo não faria falta, pensei em como tinha me enganado ao fazer a mala, selecionar o que cabia nela, já me desfazendo de um monte de coisas para os próximos meses com ares de despedida. Eu não era a minha mala, eu era eu, e aquelas coisas não serviam para nada, serviam apenas para serem descartadas, agora ou em alguma hora. Assim vivem as coisas, já nós, mais parecidos com o deus morto, temos que procurar uma utilidade para cada partezinha ou então viramos adubo.

Não eram as coisas, aliás, que iam estudar em Portugal e transformar essas sim partezinhas de mim, ideias, anotações, conversas, em uma tese de doutorado legível. Aproveitar tudo, mas para uma coisa só, densa como uma pedra, um monumento abstrato em homenagem ao Doutor Pasavento, tema da minha pesquisa. Minhas partezinhas têm todas conduzido a ele, afinal, pois o que é Doutor Pasavento e o que é tese já se confundem. Difícil escrever sobre uma pessoa, sobre as partezinhas dessa pessoa, seu trabalho, sem conhecê-la. Ou será que escrever conhecendo-o faria do trabalho impossível?

Enquanto conferi pela última vez tudo que ficaria no Brasil antes de entregar o embolado de lençol aos meus pais, muito mais feliz pela tarefa cumprida com excelência do que chateada pela falta que aquelas coisas poderiam fazer – quer me vê feliz, me dê uma tarefa fácil – pensei em uma coisa que não estava nem na mala nem na trouxa de descartes.

Um adendo: Trouxa de Descartes, onde embrulhava os restos de um deus morto, uma criatura perfeita. Partindo, imperfeita, ou renascida (a ideia brega do teatro como tarô me persegue, eu a minha própria deusa, meu renascimento, um torna-te quem tu és), sem as tralhas da trouxa. Na Trouxa de Descartes, a própria ideia de perfeição, ela mesma só concebível por um Deus perfeito e, portanto, não por mim.

Uma criatura mortal e imperfeita não poderia conceber do nada a ideia de um Deus perfeito, portanto a concepção desse Deus por um mortal era prova de sua existência, era isso que Descartes dizia. Mas o deus estava morto e suas partes, repicadas, buscavam aproveitamento. Elas eram amontoadas ali na Trouxa, em uma espera indefinida, por isso Trouxa de Descartes. A mim, sem a trouxa, restava o simulacro da perfeição e a busca pelas partes em algures, outro lado do Atlântico, entre a sombra das coisas e do Doutor Pasavento. Eu mesma perdida, bailando em um oceano.

Pensando que não descartava nem levava comigo um catálogo de Flávio de Carvalho, que seria o presente perfeito para o Doutor Pasavento. A quem eu não pretendia encontrar, pois não tinha o presente, ao mesmo tempo que, sem ter marcado um encontro, por que me daria o trabalho de carregar um livro a mais, volumoso e pesado? O fato era que não tinha o livro, nem muitas das minhas coisas. Em troca, tinha a vontade e uma ideia de presente para o Doutor Pasavento.

Na hora do check in, o sorriso da atendente que via minha mala com menos de 32kg. A vigilante do peso tinha uma expressão em que lia um orgulho, embora soubesse que era a minha imaginação levando a interpretá-la daquela forma. Vendo-a desaparecer, comecei a me despedir dos meus pais, e da trouxa. Quando se afastaram, corri até eles para recuperar uma coisa do pacote. Meu calendário de fantasmas, comprado da menina prateada, prontamente enfiado na mochila. As carinhas da imagem do mês de fevereiro agora levadas nas minhas costas, junto ao meu computador, parecendo maquinar algo com aqueles rostos em diferentes expressões a boca sorridente, fechada, aberta, acompanhada pelas mãos também variando entre espalmadas, unidas ao lado da face, amparando o queixo.

Embarquei, parti, a Trouxa de Descartes ficou. Separadas para sempre, eu e ela. Nunca mais cartesianismo, agora apenas zonas cinzentas, mala-tijolo de Schroedinger. Do outro lado do oceano, eu seria tantantan, tantantã. Tantã, acompanhada de outras coisas a serem descobertas, outras expressões faciais para fazer em situações inesperadas. A minha cara velha, enterrada e sepultada.

Aos trinta tem a cara que mereces, diz o cineasta português Miguel Gomes, então minhas primeiras semanas em Portugal foram em busca de uma cara.

É um pouco estranho não ter cara quando antes se tinha tantas. Ninguém te reconhece, nem te observa longamente esperando encontrar nas suas características físicas um nome, um grau de parentesco. Aos poucos, você entende que, por não ter uma cara, tornou-se incapacitado de ler caras.

Ler Caras explica bem o que quero dizer. Em Portugal, existe a revista Caras, idêntica à sua irmã brasileira. Passa-se nas bancas de jornal e, por menos de um segundo, dá para esquecer que é um outro país, com celebridades diferentes, porque a revista é igual, e as pessoas tem rostos muito parecidos com aqueles que estampam o noticiário de fofocas e o colunismo social brasileiro, porém são nomes que desconheço e fisionomias que sempre lembram alguém, sem remeter a nenhum nome. Não é como se eu estivesse em um país diferente, apenas como se tivesse perdido a capacidade de reconhecer rostos.

É estranha a sensação de nunca reconhecer nenhum rosto, porque não conhecia ninguém, famoso ou anônimo. Isso resume não ter cara, e decidi me fechar no meu apartamento alugado até que tivesse uma. O que eu não esperava é que, pouco tempo depois, a universidade fechasse, as ruas morressem e todos fossem orientados a ficarem em suas casas, fossem elas permanentes ou provisórias.

Meu senhorio, complacente com a minha falta de fisionomia, me deu uma máscara, para ser usada caso estivesse na companhia de outras pessoas. Em casa, passaram semanas em que o espelho era um enorme vazio, contornado por um cabelo que não parava de crescer. Cresceu muito e rápido, passou dos ombros e chegou à cintura, emoldurando uma obra minimalista e pálida.

Aos fins de semana, percorria o norte de Portugal, as praias fluviais, em busca dessa cara, tirando areia do fundo da água fria para moldar um nariz, olhos, que me coubessem. Fiz sobrancelhas mais grossas do que jamais tive sobre olhos de folhas secas, narizes de galhos de diferentes formatos. Não fiz boca, porque acho que em um país novo devia primeiro ouvir, para depois falar.

O senhorio falava, como os demais portugueses, abusando de diminutivos. Do meu apartamento para a universidade era um tirinho, custava trinta e cinco cêntimos a natinha, minha orientadora se despediu de mim em sua mensagem de boas-vindas com um beijinho. Ouvia tudo aquilo tentando me fazer caber nas palavras em miniatura, em um país tantas vezes menor que o meu de origem, na cidade cuja população não sei, mas é menos de um milhão. E ouvia com meus ouvidos em uma cara sem cara, pois ainda buscava conquistar a minha primeira em além-mar.

Passei a falar ao telefone, muito, o quanto podia. Era como se tivesse me tornado apenas uma voz, enquanto deusa morta, era minha única partezinha aproveitada até então. Não havia mais segmentos de raciocínio para montar, textos picotados enquanto os lia para depois virarem matéria-prima da minha própria escritura.

Eu sequer escrevia, apenas a tela, segurava um botão do teclado, depois outro, fazendo linhas de repetições de teclas para encher páginas. Talvez isso fosse apenas outra escrita, cujo propósito eu ainda estava por descobrir.

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Nota da editora: Dia 15/12/2021, às 19 horas, acontecerá o lançamento presencial do livro Meu ano Flávio de Carvalho, no Empório do Tuga (Alameda Lorena, 1263, Jardim Paulista, São Paulo). Tá todo mundo convidado!

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Thais Lancman é uma escritora paulistana nascida em 1987. Publicou os livros Palito de fosfeno (2014, Reformatório) e Pessoas promíscuas de águas e pedras (2021, Patuá) – finalista do Prêmio Oceanos, além de contos e ensaios em coletâneas no Brasil, Alemanha e Áustria e em revistas impressas e online. É doutora em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, dá aulas e trabalha como ghost writer