O SILÊNCIO DA REVOLUÇÃO – ADRIANO B. ESPÍNDOLA SANTOS

Coluna | Anseios Crípticos


Eu costumava dormir, nas tardes de domingo, impregnado pelo som de Chico Buarque. Claro, não compreendia o sentido das letras – no auge dos meus seis anos; apesar da lembrança viva –, mas o que importava, de fato, era a melodia, que incutia nas minhas veias, em doses homeopáticas e constantes, a semente da revolução. 

Meu pai, ao que parece, nesse tempo havia se dedicado a atividade de ser pai. Depois de dois ou três anos preso na ditadura, sob a alcunha de Cerco Feroz, não tinha mais a disposição de pegar em armas.

Isso sei por minha mãe, porque ele, sujeito introspectivo e cismado, nunca mais quis saber do passado. Mas posso garantir que, por pequenos gestos, ele tentava me formar como homem independente, consciente, para não ser serviçal do capitalismo.

Um dia desses, anos após a sua morte, sentei-me com mamãe, no alpendre de sua casa avarandada, e toquei no assunto que era tabu para todos nós: papai foi mesmo um revolucionário? “Ah, meu filho, não se mexe em água descansada. Isso já deu no que tinha de dar; não acha?”. Pelo visto, ela notou a minha aflição. Eu esperava uma resposta objetiva e certeira, para aquietar os meus demônios. Depois de um tempo, mãe, então, com uma voz arrastada, ajeitando-se várias vezes na cadeira, como para pegar coragem, contou o “causo”:

“Seu pai, Juliano, veio das bandas do Norte… [ela parava para tomar fôlego]. Não que tivéssemos realidades distantes, mas, segundo ele, lá no Pará a repressão era maior, com perigo mesmo de morte… No terceiro mês de 1978, seu pai saiu mais uma turma de homens preparados, atrevidos, para ocuparem a Universidade Federal do Pará. A justificativa era que, assim, forçariam, pelo respeito que ainda havia, de certo modo, à ciência, uma recuada; que levaria o seu pessoal a conquistar espaços, talvez até o domínio da cidade. Não sei bem se era utopia ou imaginação, mas pensavam dessa forma.

“Era uma aventura muito da pretensiosa, eu sei; contudo, conforme ele me disse, não havia mais escapatória, ou pegavam em armas, ou seriam sempre reféns do humor dos tiranos.

“Lá, arranjaram-se com uns professores, poucos, e uma comunidade inteira de mais de trezentos alunos e simpatizantes da causa. Para a época, era um número considerável. A questão era que nem todos estavam imbuídos do sentimento de revolta; nem todos seriam capazes de tudo.

“Resultado é que uma parte, logo no primeiro enfrentamento, se debandou. Não aguentaram ver meia dúzias dos seus morrerem e serem arrastados pelos carros da polícia, para serem eliminados não se sabe onde, feito bichos; decerto enterrados como indigentes ou coisa do tipo.

“Seu pai, que sempre foi homem corajoso, nessa aventura inicial ficou com medo. Os que ficaram – que aí já se podiam contar nos dedos – queixavam-se da desorganização, pois o Oliveira, que era o cabeça, teria sido morto no ataque, e não sobrara alma viva que se desse como comandante. Foi nessa ocasião, numa reunião de assembleia, onde decidiriam o destino da empreitada, que seu pai colocou o nome para ser o guia. Como era quieto e franzino, rechaçaram; no entanto, logo aceitaram, porque não haveria outro que se pudesse botar no lugar.

“Cálice, do Chico, foi a primeira música que ele escutou na noite da decisão. Era, sim, o mentor daquele grupo. E ele ansiava, nos momentos de discórdia com a consciência, afastar-se do tremendo cálice. Ele me falou, meu filho, com os olhos cheios d’água, que ‘queria morrer no próprio veneno’; morreria com o próprio veneno, se preciso fosse. Entregou-se de corpo e alma.

“Após duas semanas, a imagem era de uma lama de ‘vinho tinto de sangue’. O pelotão rebentou o que tinha pela frente; todas as barricadas, todas as formas de bloqueio inventadas para impedir a entrada de quem quer que fosse. Seu pai ainda resistia com trinta ou quarenta homens, quando o regimento os confinou num canto fechado, no bloco de Economia Agrícola.

“Houve uma noite intensa de tiros, num Sábado de Aleluia. A promessa era que, se se entregassem, sairiam todos vivos – só não se sabia vivos até quando. Laércio pegou um fuzil e saltou a janela, sem prévio aviso, e despejou uns vinte tiros, matando alguns dos soldados. Morreu, igualmente, de uma saraivada de tiros, que por pouco não o cortaram ao meio. Essa foi a visão que mais chocou o seu pai, que compreendeu que aí estava funcionando o sentido do ‘cale-se’, como no conceito da música.

“Não durou mais que algumas horas para todos se entregarem. O grupo, em parte, se desbaratou, correndo uma ruma de gente pelos campos e saindo na surdina. Ficaram os cabeças e os mais ardorosos, na sina da revolução.

“O resultado foi que seu pai se tornou preso político. Era torturado, a ponto de quase morrer, em paus-de-arara, choques e porradas; mas, segundo ele, não entregou unzinho.

“Tenha orgulho de seu pai, meu filho, foi guerreiro que aguentou três anos nas mãos dos carrascos, até ser solto e jurado de morte, se se metesse de novo com o comunismo.

“Nos conhecemos em 1981, quando algo se abrandava, na antiga Faculdade de Ciências Sociais daqui. Eu, menina, me encantei por aquele homem formoso, manso, de olhar renitente e pedinte; seguro de si. Mudou-se de sua terra natal, porque achava que era preciso construir vida nova. Terminamos, ambos, o curso de Sociologia em 1985, e resolvemos nos casar. E você já estava em minha barriga.

“Seu pai, por uma inquietação e um ânimo indecifráveis, escutava Chico, como a lembrar dos velhos tempos, como a pagar penitência; como a ser abençoado, pela luta que travou.

Nunca mais quis saber disso. Declarou que, para ele, só bastavam a convicção e o exemplo. Veja que o seu pai era homem de poucas palavras, mas dignas, corretas. Ainda assim, censurado pela mente e pelo medo, alimentou a sua decência”.

***

Da conversa que tive com dona Helena, restaram-me as referências; o gosto amargo de Fernet e a exuberância descritos pela voz de Chico. Agora sei por que me causa tanta gastura escutar “Tanto mar” e “Cálice”, por exemplo. Os cientistas falam de memória celular; eu falo de genética, de espiritualidade, de ligação eterna.

“Chico é poeta, meu pai, e eu te entendo por ele. Ensina-me, até hoje, a viver o seu tempo, para fazer, por mim, a mesma revolução silenciosa que o senhor fez. Leio ‘O Irmão Alemão’ e tenho tido alguns sonhos, como se procurasse sempre te encontrar, para te libertar, em qualquer estação. Oxalá. Oxalá”.

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Adriano B. Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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Referências
BUARQUE, Chico. O Irmão Alemão. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
Cálice (Cale-se). Chico Buarque & Milton Nascimento. Disponível aqui. Acesso em: 09.12.2021.
Chico Buarque: Tanto Mar (DVD Palavra Chave). Disponível aqui. Acesso em: 09.12.2021.
Gilberto Gil explica a música “Cálice”. Disponível aqui. Acesso em: 09.12.2021.

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