TREMORES – VALENTINA BASCUR MOLINA

Coluna das Ausências


Minha mão treme toda vez que começo a escrever sobre Gabriela Mistral. Existe em mim uma sensação de estranhamento constante em torno à sua figura e uma tentativa sincera de tentar me aproximar dela.

Gabriela Mistral foi uma poeta, professora e diplomata chilena, Prêmio Nobel de Literatura (1945), que nasceu Lucila Godoy Alcayaga, em Vicuña, uma cidadezinha no interior do norte do Chile. Viveu numa época um tanto distante da nossa (1889 – 1957) e mesmo assim a sua obra me parece contemporânea. Arriscaria dizer que atemporal, até.

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Y nunca fuimos soldados
ni maestros ni aprendices,
pues vagamente supimos
que jugábamos al tiempo
siendo hijos de lo Eterno.
Y nunca esta Patria dejamos,
y lo demás, sueños han sido,
juegos de niños en patio inmenso:
fiestas, luchas, amores, lutos.

Y la muerte fue mentira
que la boca silabeaba;
muertes en lechos o caminos,
en los mares o en las costas;
pequeñas muertes en que cerrábamos
ojos que nunca se cerraron.


(…)
Y baldíos regresamos,
¡tan rendidos y sin logro!
balbuceando nombres de “patrias”
a las que nunca arribamos.
Y nos llamaban forasteros
¡y nunca hijos, y nunca hijas!

Trecho de “El Regreso”, Lagar (1954).

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Tive a possibilidade de conhecer a sua terra natal: Vicuña, Montegrande, Pisco Elqui nos vales do norte do Chile. Num rápido passeio pelas suas ruas pensava no que diria Gabriela para estas terras que dedicou tanto empenho para a sua emancipação, principalmente para o acesso à educação de mulheres e crianças. O que diria Gabriela para aquelas crianças que hoje não tem acesso a bens básicos como água, recurso sugado pela indústria mineira e pelo monocultivo de abacates tipo Hass?   Não consegui conter o meu espanto ao perceber que a distribuição de água por caminhões atualmente é uma prática tida como normal na população local.

Me treme a mão porque enquanto ex-criança que cresceu ouvindo seus poemas e canções de ninar, a sua figura sempre me pareceu de destaque, mas desde uma imagem fria e distante, inalcançável e enigmática.

Com o tempo a sua figura enigmática tornou-se cada vez mais fascinante. Nos últimos anos a sua obra tem tido interesse renovado por vários aspectos da sua vida privada que vieram à tona no espaço público: O seu relacionamento afetivo com a poeta Doris Dana, a sua mística e estudos espirituais sobre cristianismo e budismo, o seu posicionamento crítico frente aos movimentos feministas elitizados da época.

Minha mão treme porque todos estes aspectos citados que ficaram resguardados por décadas no âmbito da intimidade, hoje a tornam uma figura interessantíssima, com um público atual que procura na sua jornada tanto pessoal como artística, uma inspiração para estes tempos.

Sinto a Gabriela mística mais próxima do que o rosto da Prêmio Nobel nas notas de 5.000 pesos chilenos, ou nas esculturas apáticas das praças públicas. A Gabriela que escreve sobre o seu território, me parece mais verosímil. E como não? Se ao contemplar as montanhas que a rodeiam e fazem nascer os vales fica difícil não ficar comovida.

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Me lembro do teu rosto que se fixou nos meus dias,
mulher de saia azul e de tostada frente,
que na minha infância e sobre minha terra de ambrosia
vi abrir o sulco negro em um abril ardente.

Alçava na taberna, profunda, a taça impura
quem um filho te prendeu ao peito de açucena,
e sob esta lembrança, que te era queimadura,
caia a semente da tua mão, serena.

Segar te vi em janeiro os trigos da tua filia,
e sem compreender dei a ti os olhos em vigia,
esbugalhados ao par de maravilha e pranto.

E o barro dos teus pés ainda beijara,
porque entre cem mundanas não pude encontrar tua cara
e a sobra ainda te sigo nos sulcos com meu canto!

A Mulher Forte, Desolación (1922). Tradução de Davis Dinis.

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Na visita ao museu dedicado à sua trajetória destaca-se por sobretudo a sua origem pobre, o seu compromisso com o acesso à educação nos contextos rurais, o seu apreço pelas culturas indígenas e a solidariedade política entre os territórios latino-americanos.

Na parte dedicada aos seus objetos pessoais simplesmente cai em prantos. Fotos alegres com o seu filho adotivo Yin Yin me provocaram profunda emoção. Yin Yin suicidou-se aos 17 anos, com consequências irreparáveis na vida da sua mãe.

 Gabriela e seu filho Yin Yin. Acervo do Museo Gabriela Mistral, Vicuña, Chile.

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Amo as coisas que nunca tive
com as outras que já não tenho:

Toco uma água silenciosa,
parada nos pastos friorentos,
que sem um vento tiritava
no horto que era meu horto.

Olho para ela como a olhava;
um estranho pensamento me repassa,
e brinco, lenta, com essa água
como com peixe ou com mistério.

Penso no umbral onde deixei
passos alegres que já não levo,
e no umbral vejo uma chaga
cheia de musgo e silêncio.

Ando à procura de um verso perdido,
que aos sete anos me disseram.
Foi uma mulher fazendo pão
eu vejo sua santa boca.

Vem um aroma partido em rajadas;
sou muito agraciada se o sinto;
de tão delicado não é aroma,
sendo o cheiro das amendoeiras.

Meus sentidos voltam a ser criança;
invento um nome e não acerto,
e inspiro o ar e os lugares
procurando amendoeiras que não encontro.

Um rio soa sempre perto.
Há quarenta anos que o sinto.
É cantoria do meu sangue
ou então um ritmo que me deram.

Ou o rio Elqui da minha infância
onde me banho e mato o tempo.
Nunca o perco; peito a peito,
como dois meninos nos possuímos.

Quando sonho com a Cordilheira,
caminho por desfiladeiros,
e vou ouvindo-os, sem trégua,
um assovio quase juramento.

Vejo o remate do Pacífico
arroxeado meu arquipélago,
e me ficou de uma ilha
um cheiro pungente de alcião morto…

Um dorso, um dorso grave e doce.
remata o sonho que eu sonho.
É o final do meu caminho
e descanso quando chego.

É tronco morto ou é meu pai,
o vago dorso cinzento.
Eu não pergunto, não o azucrino.
Estando dele junto, calo e durmo.

Amo uma pedra de Oaxaca
ou Guatemala, da qual me aproximo,
rúbea e fixa como minha cara
e cuja fenda me dá ânimo.
Quando durmo ela fica nua;
não sei por que eu a viro.
E talvez ela nunca haja existido
e meu sepulcro é o que vejo…

“Cosas”, Tala (1938). Tradução de Davis Diniz.

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Gabriela Mistral morreu em 1957 nos Estados Unidos, nunca se radicou no Chile, passando temporadas em países da Europa e América Latina a propósito das suas funções diplomáticas. Doris Dana (1920-2006) cuidou dela até os seus últimos dias, e foi a única herdeira da sua obra.

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Doris Dana e Gabriela Mistral na sua residência em Long Island, Nova Iorque (1954). Biblioteca Nacional do Chile.

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Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.