Coluna | Terra Treva
Publicadas pela primeira vez em 1974, as coletâneas de contos Onde estivestes de noite e A via crucis do corpo representam uma nova fase na produção ficcional de Clarice Lispector. Ainda manifesta-se a autora que, três décadas antes, na ocasião do lançamento do romance Perto do coração selvagem (1943), causou impacto no sistema literário brasileiro com um projeto estético erigido por meio de paradoxos, de rupturas no rotineiro e de imprevistos para expressar a dor e a glória de se estar vivo; um projeto realizado por meio de uma escrita ousada, urdida com construções sintáticas inesperadas, contiguidades e similaridades inauditas, e uma imaginação capaz de conceber imagens desconcertantes e vertiginosas. É assim que Lispector lança-se na jornada de dizer o indizível, de capturar o inapreensível, em uma batalha sempre perdida contra a linguagem. Observa-se esse mesmo enfrentamento nas duas obras em questão; entretanto, elas já apresentam uma contista diferente daquela de Laços de família (1960) e A legião estrangeira (1964). Sobretudo em Onde estivestes de noite, afastam-se atributos como a introspecção e a náusea, e impõem-se o imoral, o profano, o hedonismo e, em certa medida, o macabro. A escrita também transforma-se: os fluxos de consciência e os sinuosos solilóquios de antes cedem espaço a uma composição incisiva e a um estilo direto. No prefácio para a edição recente dessa coletânea publicada pela editora Rocco, o crítico e especialista Ricardo Iannace afirma que tal mudança aponta para “uma autora cada vez mais distante das estruturas-padrão do gênero literário, sensível à voz do feminino, alerta à sexualidade de suas personagens.
O conto que nomeia a coletânea espelha essas características. “Onde estivestes de noite” constitui-se por uma aventura dionisíaca, ou mesmo iniciática, de confrontação a limites e padrões, na qual há muito de macabro e de grotesco. Por essas qualidades, parece-nos plausível apontar, no conto, elementos pertencentes ao vocabulário e ao imaginário do horror. A começar pelo enredo: a primeira e maior parte da narrativa é ocupada por uma procissão noturna de figuras que parecem em transe, denominadas “os malditos”. Buscando vivenciar “supersensações”, eles sobem uma montanha em cujo cume há uma misteriosa entidade andrógina chamada “Ele-ela” (e por vezes “Ela-ele”). Já a segunda parte é diurna; apresenta-se o amanhecer de domingo de algumas dessas personagens, após a narração indicar que a aventura da madrugada foi um sonho. E as quatro epígrafes do conto já encaminham a leitura na direção do insondável, do mórbido e do iniciático: “As histórias não têm desfecho” (Alberto Dines); “O desconhecido vicia” (Fauzi Arap); “Sentado na poltrona, com a boca cheia de dentes, esperando a morte” (Raul Seixas); “O que vou anunciar é tão novo que receio ter todos os homens por inimigos, a tal ponto se enraízam no mundo os preconceitos e as doutrinas, uma vez aceitas” (William Harvey).
Com efeito, adentramos o conto tendo a noite como uma “possibilidade excepcional”, plena de portentos, assombros e sensualidade. Aqui, o noturno sai do título e espalha-se por todos os lados, figurando, entre outros símiles, como o “desconhecido que vicia”, o “tão novo” capaz de combater preconceitos e doutrinas enraizados. A noite é o terreno dos mistérios por onde arrasta-se a procissão, e em cujo núcleo, ou cume, está a inquietante figura andrógina. Sua descrição remete ao sublime de Burke: “um ser tão terrivelmente belo, tão horrorosamente estupefaciente que os participantes não poderiam olhá-lo de uma só vez: assim como uma pessoa vai pouco a pouco se habituando ao escuro” (Ibid.). O ser está envolvido em uma mortalha de cor cambiante — ora “de sofrida cor roxa”, ora “púrpura, vermelho-catedral”. De Ele-ela emana também a beleza medúsea de que fala Mario Praz, pois a entidade exerce perigoso fascínio naqueles que compõem a procissão. E o agrupamento é heterogêneo: há um padre, um “judeu pobre”, um açougueiro, um padeiro, uma jornalista, uma “escritora falida”, um milionário, um “masturbador” e até uma menção a Thomas Edison, entre outros. Seu périplo montanha acima é acompanhado de estranhas ocorrências, como um cão personificado que gargalha no escuro, um anúncio de clarineta feito por um arauto mudo e um anão corcunda que saltita e levita; sinais inequívocos de que, ao adentrar-se a noite, penetra-se também o sonho, o implausível.
O surreal, de fato, marca forte presença no conto, sendo favorecido pela cumulação de rompantes, lapsos e epifanias apresentadas na escritura. São quebras que aproximam a narrativa do caráter fragmentário e absurdo dos sonhos, como expressa o trecho a seguir:
De vez em quando ouvia-se um longo relincho e não se via cavalo nenhum. Sabia-se apenas que com sete notas musicais fazem-se todas as músicas que existem e que existiam e que existirão. Da Ela-ele emanava-se forte cheiro de jasmim esmagado porque era noite de Lua-cheia. O catimbó ou a feitiçaria. Max Ernst quando criança foi confundido com o menino Jesus numa procissão. Depois provocava escândalos artísticos.
Palavra após palavra, acompanha-se o encadeamento de pensamentos da narradora, como se o texto fosse uma radiografia de suas sinapses. Por vezes, ambos, palavra e pensamento, parecem dispersar-se, afastando-se do enredo; contudo, uma leitura mais livre desses trechos permite afirmar o contrário, pois são eles que tocam a essência sensorial ou sensual da narrativa, que apontam para sua liberdade fundamental. E mesmo nesses arroubos, que nada têm de aleatórios, há pontos de contato com a trama: o relincho de um cavalo, remetendo à energia animalesca que em certo momento possui a multidão; a feitiçaria, que adensa o clima de misticismo; a procissão em que o pintor e poeta Max Ernst é confundido com Jesus; o próprio Ernst, expoente do surrealismo na Alemanha, cujo trabalho pictórico carrega fortes traços do grotesco. No entanto, mesmo esse caráter onírico da narrativa é atravessado por elementos sinistros. E o espaço no qual desenvolve-se a ação aproxima-se do locus horribilis:
Os pântanos exalavam. Uma estrela de enorme densidade guiava-os. Eles eram o avesso do bem. Subiam a montanha misturando homens, mulheres, duendes, gnomos e anões — como deuses extintos. O sino de ouro dobrava pelos suicidas. Fora da estrela graúda, nenhuma estrela. E não havia mar. O que havia do alto da montanha era escuridão. Soprava um vento noroeste. Ele-ela era um farol? A adoração dos malditos ia se processar.
A figuração do espaço contribui para a composição da atmosfera perturbadora da narrativa, um procedimento que também vincula-se à manufatura do horror. A sinestesia, recurso estilístico utilizado com recorrência por Lispector, participa dessa construção: “As trevas eram de um som baixo e escuro como a nota mais escura de um violoncelo”. E as imagens que povoam a escritura têm também a marca do grotesco: os já mencionados anão corcunda, que dá pulinhos como um sapo e depois levita, e o cão que gargalha na escuridão; as mulheres que apertam os próprios seios para deles esguichar um grosso leite preto; o canibalismo profetizado por Ele-ela; e a própria figura andrógina, de “assustadora beleza e seu perigo”.
No estudo A experimentação do grotesco em Clarice Lispector, Joel Rosa de Almeida enxerga em Ele-ela uma espécie de vetor do grotesco na narrativa: “À proporção que a protagonista exerce uma atração avassaladora, ao longo da caminhada, vão sendo projetadas, especularmente, as faces grotescas desta nos malditos”. O espelhamento implica uma espécie de possessão sobrenatural — um tópico recorrente do horror —, pois “Ele-ela pensava dentro deles”, dando ordens em suas mentes. A alusão ao tema da possessão recebe, ainda, uma camada intertextual com a dupla menção à obra O exorcista, de William Peter Blatty, por parte de uma das personagens na segunda parte da narrativa. Durante a procissão dos malditos rumo ao andrógino, a possessão indica ainda uma fusão corpórea por meio da alteridade. Trata-se de um procedimento que evidencia a busca por completude na obra clariceana, e que, de acordo com Almeida, também é um índice do grotesco:
Na composição grotesca, os malditos, em direção ao cume da montanha, rastejam e refletem as projeções grotesco-especulares do andrógino envolvente, numa corporeidade figurativa tão alterada a ponto de haver momentos nos quais quase não é possível a distinção entre os malditos e o andrógino.
Essa percepção favorece o diálogo do conto com o imaginário do horror, dada a predominância de uma visualidade que repele e atrai na mesma medida. Mesmo na segunda parte da narrativa, quando faz-se a luz e os malditos seguem com suas vidas aparentemente normais, reverberam os ruídos e cintilam as imagens da selvagem noite: “Madrugada: o ovo vinha rodopiando bem lento do horizonte para o espaço. Era de manhã: uma moça loura, casada com rapaz rico, dá à luz um bebê preto. Filho do demônio da noite? Não se sabe”; e, mais adiante, uma reiteração do papel exercido pelo desconhecido no conto: “Eis o que acontece quando alguém escolhe, por medo da noite escura, viver a superficial luz do dia. É que o sobrenatural, divino ou demoníaco, é uma tentação desde o Egito, passando pela Idade Média até os romances baratos de mistério”. A revelação de que os espantosos eventos noturnos configuram uma espécie de sonho coletivo ainda vincula “Onde estivestes de noite” a narrativas do fantástico oitocentista, nas quais com frequência o sono, o delírio e os psicotrópicos eram os catalisadores da transgressão ao paradigma de realidade.
Note-se, ainda, que as frases breves a comporem a escritura são como pinceladas vigorosas em uma tela, na qual vai revelando-se a espantosa cena da procissão noturna e, depois, o painel de cenas rotineiras pela manhã. Um diálogo com a pintura não parece casual: um ano após a publicação da coletânea Onde estivestes de noite, surgem os quadros de Lispector. Elaborados com óleo e técnicas mistas, eles parecem buscar, da mesma forma que a escrita literária, algo de primitivo na expressão artística. A esse respeito, Iannace comenta que, em paralelo a narrativas nas quais
fortes impressões a respeito de vida e morte se desenham sob acordes vibrantes, existe uma matéria pictórica de aspecto rudimentar, em que traços e camadas grossas de tinta, cola líquida e vela derretida inscrevem o fragmentário e o sinistro em plano vigorosamente abstrato.
A obra “O sol da meia-noite”, de 1975, exemplifica essa relação:

O sol da meia-noite. Técnica mista sobre madeira. 35x50cm.
Outro quadro que aqui merece menção é intitulado Medo:

Medo. Técnica mista sobre madeira.35x40cm.
Em ambas as obras, nota-se o caráter numinoso que perpassa parte da ficção clariceana, em específico o conto “Onde estivestes de noite”. Tal qualidade pode ser relacionada à epifania de descobrir-se no mundo e na vida, com toda a carga de espanto inerente a essa revelação. Ao tratar do segundo quadro, a própria autora reflete a esse respeito em entrevista para Olga Borelli, na obra Clarice Lispector: Esboço para um possível retrato:
Pintei um quadro que uma amiga me aconselhou a não olhar porque me faria mal. Concordei. Porque neste quadro que se chama Medo eu conseguira pôr pra fora de mim, quem sabe se magicamente, todo o medo-pânico de um ser no mundo.
É uma tela pintada de preto tendo mais ou menos ao centro uma mancha terrivelmente amarelo-escuro. Parece uma boca sem dentes tentando gritar e não conseguindo. Perto dessa massa amarela, em cima do preto, duas manchas totalmente brancas que são talvez a promessa de um alívio. Faz mal olhar esse quadro.
Cabe mencionar, por fim, o interesse pessoal de Lispector por expedientes de magia e ocultismo, o que contribui para inseri-la em um horizonte de expectativas do horror. É sabido que a autora frequentava cartomantes e, um ano após a publicação de Onde estivestes de noite, em 1975, foi convidada a participar de um congresso de bruxaria na Colômbia. Além disso, as traduções realizadas pela autora favorecem o diálogo com as histórias assustadoras: Lispector assinou uma versão para o português de Entrevista com o vampiro, de Anne Rice, bem como a tradução e a adaptação de contos de Edgar Allan Poe e de O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde.
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Oscar Nestarez é pesquisador e escritor da ficção literária de horror. No campo da pesquisa acadêmica, possui Mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e atualmente cursa Doutorado pela USP, tendo como objeto de estudos centrais a obra de Edgar Allan Poe. Como ficcionista, publicou Poe e Lovecraft: um ensaio sobre o medo na literatura (ed. Livrus, 2013), as antologias Sexorcista e outros relatos insólitos (ed. Livrus, 2014) e Horror adentro (ed. Kazuá, 2016), e o romance Bile negra (ed. Empíreo, 2017), além de contos em diversas coletâneas. É também colunista da Revista Galileu, em que aborda temas da ficção de horror, e da revista Vício Velho.
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