“A vida se transforma rapidamente.
A vida muda num instante.
Você se senta para jantar, e aquela vida que você conhecia acaba de repente.
A questão da autopiedade”.
Joan Didion em “O ano do pensamento mágico”.
Eu sei que Joan Didion (1934-2021) escreveu estas frases tentando elaborar a morte súbita do seu marido, mas enquanto lia “O ano do pensamento mágico” foi inevitável trazê-lo para as minhas próprias referências, para as minhas mortes cotidianas.
Já se passou um ano desde o dia que abandonei a mesa do jantar.
Tento tecer estas memórias pensando no que Didion disse sobre “a questão da autopiedade”. Talvez, num movimento natural de procurar uma certa dignidade no meio de uma realidade que se desfaz.
Hoje os dias de inverno
me parecem tão estranhos.
O ar está seco
sem umidade.
Não há referências
É um dia idêntico ao outro.
Esses dias li
que nas ruínas
há sempre algo que permanece.
É isso
exatamente isso
que eu sinto
sobre o nosso amor.
RUÍNAS
E o que permanece
é o hálito amargo.
Poema autoral.
Depois de abandonar a mesa do jantar veio um período bom de alívio, só que o tempo vai cutucando as coisas, e comecei a me sentir sozinha e alheia no lugar que me viu nascer.
(Dependendo do contexto, voltar para casa dos pais pode ser um refúgio).
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“Eu sei por que tentamos manter vivos os mortos.
Tentamos mantê-los vivos para mantê-los conosco.
Sei também que, se a gente continuar vivo, chega uma hora em que a gente tem que abandonar os mortos, deixá-los ir, mantê-los mortos.
Deixar que eles se tornem uma fotografia em cima da mesa.
Deixar que eles se tornem um nome nas contas do inventário.
Soltar-se deles na água.
Saber disso não torna mais fácil soltar-se do John na água”.
Joan Didion em “O ano do pensamento mágico”.
Posso dizer que passei o ano trancada num quarto – que costumava ser o da minha irmã – , tentando reformular a minha vida em liberdade, mas com uma tristeza que invadia os meus dias.
Essa tristeza na verdade era um grande adeus que se fermentava aqui dentro.
Um adeus às ruas, praias, feiras, centros budistas, chuvas e mercados que não voltariam mais. Lugares que já não me seriam mais cotidianos.
Perdas que não tive condições de ponderar no dia que decidi abandonar de vez a mesa do jantar.
O que tenho hoje, é uma sensação de ter atravessado um luto em silêncio e solidão: cidades que não voltam. Lugares nos quais, a partir de hoje serei apenas turista. Amizades que não estarão mais ao alcance de um bater na porta.
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O lugar que me viu morrer.
Este lugar lindo, de natureza exuberante e beleza absurda me viu morrer tantas vezes. Viu como a vida escapava pelos meus poros, quando tudo se resumia em tentar sobreviver.
Me viu morrer porque no dia que decidi ir embora (por sobrevivência), a minha vida nunca mais voltou a ser a mesma.
Hoje meus olhos habitam esse lugar com uma vitalidade rara, que nunca senti antes. Com a certeza de que no meio de alguma brecha consegui ser feliz.
Parece que meu corpo quer tocar e atravessar todas as paredes dos lugares onde morei, só pra conseguir se despedir. Os meus pés fazem quase que automaticamente o mesmo caminho de sempre: pra feira, pro mercado, pra praia. Eles me levam praqueles lugares onde me refugiei tantas vezes.
Hoje meus olhos observam este lugar com um brilho inexplicável.
Este lugar me viu morrer. E hoje me vê sendo outra.
Ou, eu mesma.
Texto autoral.

(O lugar que me viu morrer)
Foram tantos pontos que me tocaram na leitura do “O ano do pensamento mágico”: o retorno para aquele lugar ‘intacto’, a recusa de olhar para o futuro quando a vida me empurrava para outros lugares (hoje me empurra, literal, pro Rio de Janeiro, rs). Didion me ajudou a contemplar a impermanência, inclusive das coisas que achamos que nunca vão mudar:
“As flores secam, as placas tectónicas se acomodam, as correntes profundas se movimentam, as ilhas desaparecem, os quartos ficam esquecidos” (Joan Didion).
E nós … (que continuamos vivos)
recomeçamos uma e outra vez.
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Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.