Coluna | Anseios Crípticos
Poxa, mal começou o ano e eu não tenho um pingo de energia. Ainda não me recuperei da exaustão dobrada de 2020 e 2021. Não tem como se recuperar. É ilusão e desonestidade falar “Feliz Ano Novo”, francamente, quando não há “nada de novo sob o sol”; quando as pessoas estão dispostas a destruir com as suas metralhadoras digitais; quando há falta de vacinas; quando há briga para a vacinação de crianças ou não; quando não há humanidade; e quando há mortes, aos milhares.
Vi agora, por acaso, um vídeo de uma cena degradante que se passou em Brasília, de uma senhora, aparentemente alucinada, declarando, em um supermercado, que não iria usar máscara “porra nenhuma”, argumentando, veja só: liberdade; que estava no seu direito etc. e tal. Direito de quê? De proliferar o vírus e suas variantes? Ah, façam-me o favor, incinerem esses malucos, tirem-nos da minha frente.
Repito: eu não suporto mais. É variante da variante; influenza; o caralho a quatro. E eu fico pensando na minha grande amiga Clarice, que, naquele tempo, já se queixava do cansaço. Imagine se ela estivesse aqui, agora. Não sei nem como seria possível.
Ela estaria escrevendo, vivendo a sua fábula, alheia a tudo? Acho que não… Mas, pensando bem, talvez sim. Era a única coisa que ela sabia fazer muito bem – ela dizia; apesar de eu ter certeza de que ela era boa e habilidosa em vários quesitos, como ser mãe.
Ah, Clarice, por que sonhei com você essa noite? Eu me pergunto, até agora – cinco da tarde –, qual a razão de sua aparição sem aviso. Espíritos não avisam quando têm de aparecer, essa é a verdade. Você estava tão ansiosa, roendo as unhas; passando constantemente as mãos macias nos cabelos de pluma, praticamente um ato celeste, sem atrito algum. Esses, eu sei bem, eram mesmo os seus modos quando estava atulhada de compromissos.
Você divagava, conversando, como se não houvesse freio; queria me “dizer tudo”, e eu não sei se a escutei por completo. Era nítido que você procurava um jeito de me contar logo, sem tempo para os meus gracejos habituais.
Ah, como você estava linda. Apesar da cara abatida, brilhava com uma luz própria, como se viesse de seu interior; o seu corpo faiscava e ardia. Eu parei para lhe escutar, e tudo o que me dizia era que estava sem tempo; que a hora é agora; que tinha de escrever para amainar a afobação.
Quando eu quis te delatar a minha luta contra a covid, uns meses atrás; que eu precisava muito de sua companhia, você simplesmente sumiu, como sumia em situações de risco; nas situações que lhe fugiam do controle.
Por isso, digo: você não era desse mundo, minha amiga. Não suportaria ver tanto lixo destruir a sua arte, a arte de seus companheiros, inundados pela acidez vertiginosa de um presidente carrasco, que sequer amparou os artistas desempregados, sem atividade, nessa longa sina de incertezas.
E eu queria, também, que deixasse esse cansaço só para mim; já passei por tantas, que sou capaz de suportar o peso de suas preocupações.
Você devia descansar, desencarnar desse plano dos homens. Aqui, não há de haver solução; pelo menos, por algum tempo.
Agora, nesse comecinho de ano, tenho uma sensação estranha, como se o teto estivesse prestes a desabar. O meu teto. Contudo, minha querida, fique tranquila, faça o que tem de fazer, que vou aturar as trapalhadas que arrumaram para o fim dos tempos.
Houve um dia em que conversávamos justamente sobre isso: o fim do mundo. Você, como sempre, me falou que o fim era relativo; que nós morreríamos, mas que logo o globo voltaria ao “normal”, ao peso de sua peregrinação no universo.
Penso que a sabedoria é para poucos. Você era sábia por disposição da natureza, por seu olhar aguçado e generoso. E eu, quantas vezes, te questionei, te coloquei de propósito de encontro à parede, para te instigar em situações de dúvida; via que você gostava, porque a sua sina era a questão fundamental, como dizia Abujamra: “O que é a vida?”.
Nesse dia em que afirmávamos posições sobre o fim, você me deu uma lição tão doce e bela, que nunca pude esquecer: “Marli, o verbo terminar não condiz com a lógica do infinito universo. Você já parou para pensar que a morte de um ser humano é o recomeço de um ciclo. Bactérias e seres microscópicos, mínimos, se nutrirão de nossos corpos e recriarão um cenário retroalimentado. Somos, simplesmente, pontes para o renascimento. E tudo continuará como antes”.
Bem, posso dizer que Clarice era extremamente desapegada às coisas terrenas. Quando, num dia em que estava em sua casa, perguntei sobre a primeira roupinha do hospital de seu bebê – àquela altura um rapaz –, ela me disse, sem desconversar, que não fazia o menor sentido guardar um broche sequer. Achei, na hora, uma tremenda grosseria. Ela falava na lata, mas não sem pensar. Só depois que saí de sua casa, compreendi, sozinha, o que ela quis dizer: que o bem mais precioso não era a roupinha, mas a própria vida de seu filho; e que todas as recordações estavam guardadas na memória.
Já em casa, encucada com a sua fala, liguei para saber, então, o porquê de ter guardado tantas fotos. Mantendo o ânimo leve, como uma borboletinha que dá pinceladas nas flores, se dignou a dizer que as fotos eram somente muletas para os momentos de lapso da consciência, que falha; mas que, fora isso, não seria capaz de gerar nenhum apego. Disse até que, da mudança que fez para o Rio, se perderam inúmeras fotos, e que o fato não a aborrecia; pelo contrário, a necessidade desmedida de algo palpável poderia, sim, produzir o esquecimento – o efeito contrário. Portanto, ela fazia questão de não se abalar com isso.
Ah, minha amiga de tantas dimensões, como você faz falta!
Acordei com uma vontade danada de te encontrar e te dar um beijo. Nessa pandemia, certamente não daria brecha para o azar; era muito precavida. Mas comigo, sabendo que sou cuidadosa, teria a bondade de pelo menos deixar que eu pudesse te ver, absorver um pouco de sua aura de paz, para me restabelecer.
Por isso, fui à internet e guardei, pela milésima vez, um pouco do teu gosto. A entrevista é de 1977, na tevê Cultura, para o programa Panorama. Você aí se mostrava introspectiva, mas muito mais cansada. Falou de solidão e depois disse que não era uma pessoa só, que tinha diversos amigos. Nesse momento, no qual sempre paro, tenho certeza de que com o seu olhar mediano, com a cabeça ligeiramente baixa, estava pensando em mim. E eu estarei aqui sempre, para te acalmar, abrandar o seu espírito inquieto; como sei que faz a sua parte daí, do seu lugar reservado às divindades.
O meu coração aflito ainda busca no firmamento a sua presença. Mas, logo, se inteira de que a sua existência se faz eterna em mim.
Te amo.
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Adriano B. Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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Referências
HOMEM, Maria. Clarice Lispector: a vida é um soco no estômago. Disponível aqui. Acesso em: 4 jan. 2022.
JAFFE, Noemi. Clarice Lispector e o Efeito do Estranhamento. Disponível aqui. Acesso em: 4 jan. 2022.
LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Org. Benjamin Moser. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
Última entrevista de Clarice Lispector (HD remasterizada, 1977). Disponível aqui. Acesso em: 5 jan. 2022.