DENTES DE LEÃO – ADRIANO B. ESPÍNDOLA SANTOS

Coluna | Anseios Crípticos


De uma coisa me lembro bem, na infância, das vezes em que meu pai e meu avô – avô por parte de mãe –, com histórias incrivelmente parecidas, contavam de suas dificuldades no sertão. E as prosas se arrastavam por horas, porque decerto meus amados se agradavam com a curiosidade do menino que nunca havia morado no interior – eu. Com seis para sete anos, mais ou menos, fiz uma pergunta capciosa e dramática, sobre algo que me feria por dentro: “Vô, como o senhor sobreviveu na seca do sertão?!”. Meu avô, um homem de fala mansa, aveludada, soltou um ligeiro sorriso, desconcertado, como se estivesse intrigado com a minha astúcia, e declarou que seu pai, felizmente, era dono de umas cabeças de bois e cabras, o que dava pelo menos para o sustento trivial, com o que passaram pela severa seca de 1915, na cidade de Missão Velha, colada a Juazeiro de Padre Cícero; portanto, mística, no cerne ansiado, pendente a promissor, do Ceará. E quantas vezes ouvi o seu relato de que teria nascido em 1915 e que, por isso, seria acometido de uma fraqueza de saúde, infligida pela natureza – disso eu sei porque meu avô era franzino e um poço sem fundo de achaques; não podia comer carne porque fazia mal ao estômago; não podia tomar leite, porque dava “fininha”, e por aí vai. Então você deve me perguntar: como ele escapou com o único sustento de sua família, o leite? Bem, isso não sei mesmo explicar; é confuso, ainda hoje, para mim. Não tive a ideia de perguntá-lo ainda em vida. Mas soube por uma tia-avó, sua irmã, que o “pai” vendia o leite de casa em casa, juntava uns trocados e comprava o que pudesse minimamente estocar (cereais, por exemplo); quando muito, no auge da precisão, matava e destrinchava um animal. Meu avô contou até uma história, ao mesmo tempo cômica e triste, de quando ainda muito novo foi obrigado a distribuir o leite e, nesse dia de chuva braba, levou uma topada e escorregou no lamaçal, derramando todo o leite e a produção que daria um fôlego à família pelo menos naquela semana. Ele voltou para casa chorando e, quando chegou, ninguém percebeu o seu sofrimento, a sua autopunição, porque ele estava completamente molhado e sujo, sendo aí castigado pelo pai com várias pancadas e, logo mais, acarinhado pela mãe, na surdina, que repetia aos quatro vezes: “Meu filho, eu lhe entendo… É que você nasceu na seca do quinze, por isso é tão ‘pouquinho’; não tem força nem para se sustentar, quanto mais levar aquele absurdo de leite que seu pai mandou. Não chore mais, tudo vai se resolver. Prometo que não vai mais trabalhar com isso”. O alento de fato rendeu outros sonhos. Sendo um menino estudioso, ou propriamente autodidata, em razão de não haver escolas nas redondezas, meu avô, quando completou vinte anos, imediatamente rumou para Fortaleza, para seguir o sonho de estudar e fazer uma faculdade. Sim, ele cumpriu, já com uma idade avançada, o curso de “Madureza”, como era chamado à época, para completar o ensino de nível médio. No ato, em seguida, passou para a faculdade de Odontologia, na nona colocação, o que para ele era motivo de glória e o fez sair extasiado pelas ruas da urbe moderna, a gritar surdamente a sua alegria, com os olhos, para a multidão – não havia sequer um irmão para lhe acompanhar. Meu pai teve uma trajetória parecida com à de meu avô. Ambos, para se alimentar à noite, sem opção, comiam bananas no jantar, várias vezes, para enganar a fome. No caso de meu pai há, ainda, uma situação especial: ele era o penúltimo filho vivo de um total de dezoito – quatorze vingaram. Era taxado de besta e “mocinha” por se alhear das coisas de homens; trocava facilmente paqueras e festanças pelos estudos. Um detalhe importante que os conecta, e que não havia percebido até antão: ambos saíram de seu interior para estudar na capital e para fugirem das consequências de seguidas secas. Ah, e antes que me esqueça, os dois tinham como referência os dizeres de “O Quinze”, de Rachel de Queiroz. Cedo a grande senhora da literatura brasileira entrou em minha vida, por meio de meus amados pai e avô. “Se quer saber um pouquinho do que passei, meu filho, leia Rachel de Queiroz”, dizia meu pai – em proporções e tempos diferentes, claro, dosando as composições. Mas era justamente aí, pela voz narrativa de Rachel, que eu me embrenhava nos caminhos tortos de meus antepassados. Fui levado ao choro quando pensei que meu avô, mais que meu pai, penou nas secas subsequentes, que carregavam também os corpos de muitos dos nossos. Era uma leva que arrastava sempre bastante de suas memórias; as memórias, por exemplo, de sua mãe, minha bisavó Maria, que perdeu pai e irmãos em 1878; o absurdo dos campos de concentração, que se espalhavam no Ceará, para conter o avanço dos desterrados, dos despossuídos. Já apenados pelo destino, estes teriam de morrer à míngua, porque eram personae non gratae em sua própria terra, na Capital metida a Belle Époque. Ainda hoje é difícil lembrar disso; tenho calafrios só em olhar algumas letras de “O Quinze”, pois atiçam os genes dos meus, que moram em mim. Dizem que há a memória celular. Se é assim, há uma explicação para a dor e para o desespero intrínsecos.

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Adriano B. Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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Referências

CAVALCANTE, Talita Lopes. A grande seca do Nordeste. Disponível aqui. Acesso em: 18 mar. 2022. 

COSTA, Camilla. A Grande Seca ‘esquecida’ que dizimou brasileiros no século 19. Disponível aqui. Acesso em: 21 mar. 2022.

LIMA, Alice Santana de. O Quinze de Rachel de Queiroz – a gênese da seca. Disponível aqui. Acesso em: 21 mar. 2022.

Memória celular é capaz de definir personalidade e comportamento tanto quanto nosso cérebro. Disponível aqui. Acesso em: 19 mar. 2022.

ROSSI, Marina. Quando a seca criou os ‘campos de concentração’ no sertão do Ceará. Disponível aqui. Acesso em: 20 mar. 2022.