CUIDADO – VALENTINA BASCUR MOLINA

Coluna das Ausências


 

Não tem dia que não pense no cuidado como possível armadilha. Enquanto lavo louças, faço almoço, penso: Pode o cuidado se converter numa armadilha? Há um prazer meio estranho nisso de cuidar dos outros. Não sabemos o quanto é o suficiente. Qual o limite? Penso todo dia, porque todo dia existem tarefas infinitas de cuidado, das quais sempre alguém tomará conta, com seu corpo, força e dedicação. Querendo ou não. 

Lembro quando li ‘Morra, amor’, de Ariana Harwicz e fiquei em estado febril. A tradução ao português ficou boa, mas insisto em que o título em espanhol é muito melhor: Matate, amor. Pois supõe a ação deliberada do sujeito. Matate, é bem diferente de morrer.

Naquela noite tive dificuldades para dormir. O livro me levou para lugares meio infernais que me fez parar na metade. Senti um misto de fascinação e medo. A minha curiosidade costuma me levar para lugares ambíguos, um tanto autodestrutivos. Então prossegui com a leitura no dia seguinte. Quando terminei o livro prometi que iria dar um tempo com os próximos livros da chamada ‘trilogia da paixão’. Admiro a capacidade que a escrita da Harwicz tem ao falar questões tabu e um tanto sombrias, com uma risadinha sádica de quem está enlouquecendo aos poucos. Uma aura trágica que permeia a maternidade compulsória. Um modo de ser-estar no mundo a partir da loucura que não é nada romântico.

Sinto uma certa familiaridade com personagens loucas, aquelas que ultrapassam limites, que mal sabem quais são. Que habitam um lugar liminar o tempo todo. Na época que li o livro registrei: Acho que fui possuída por este livro de merda maravilhoso. Incrível como a autora consegue se enfiar na cabeça de quem já quis morrer, matar, atravessar janelas ou portas de vidro, ter que tutelar ao marido, morar no meio do mato e interagir com os bichos. Que vida de merda essa de quem precisa tutelar ao marido. Que alívio que o livro acaba e essa vida de merda também.

Neste romance, a personagem principal permanece no cerne da moral, tentando manter uma vida normal que a enlouquece, até que esses limites se tornam cada vez mais difusos. ‘Morra, amor’ não tem pontuações no texto, e convém respeitar a sua estrutura de relato breve para absorver a sua intensidade. Cenas do cotidiano estão cheias de exuberância, no sentido de que há sempre um excesso que não é contido, há sempre uma louca que surta ou que quer fugir, e que oferece resistência quando é encurralada.

Acho que ainda estou criando coragem para ser devorada pela escrita obscena de Harwicz.

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Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.