Coluna | Anseios Crípticos
Lygia nos deixou. Engraçado, estava lendo, na mesma semana do acontecido, Hilda Hilst; seu escrachado desejo de viver que ainda – e por muito tempo – pululará nas intricadas páginas de papel. Lygia e Hilda eram mui amigas, mas não concordo com a designação simplória de que eram “complementares”. Fosse assim, Lygia não teria existido pós-morte de Hilda. Elas se continham, mútuas, amálgamas informes; não eram contidas. Eram, sim, catarses para esse submundo no qual insistimos em existir. Como ensinou Aristóteles – e aí incremento uma palavrinha –, eram fins e extensões para a purificação dos ofendidos. Apesar disso, humano que sou, tenho uma visão que reforça a expressão comum: Lydia era afeita aos detalhes, à agudeza, enquanto Hilda tocava fogo, terrível na propriedade da escrita. Nem sei por que comecei assim, ao me referir à Lygia. É, talvez, um pensamento irmanado, não dá para fugir dessas paralexatas; Hilda e Lygia, sucessivamente: sempre. Dignas almas que martelam e atiçam, com os seus instrumentos peculiares, o fato de simplesmente existirem – como se povoar a mente fosse obra de uma entidade intangível. Elas me fazem crer que é possível e urgente escrever – claro, escreveram muito; bem. E escreveram para criar, evocar, atacar, seduzir. Outro dia – outro ano –, soube que a literatura não serve para nada. Para porcarias convencionais, de que se precisa de dinheiro, não serve mesmo, não – alguém há de me entender. Servir-se da ou com a literatura, quem sabe diga mais. Falo porque venho me servindo de doses substanciais de tolerância à vida, muito por conta de autoras como Lygia e Hilda. O que fez Lygia viver tanto tempo? A medida está no paralelismo, na dosimetria da inconstância? Será que a literatura foi mesmo a responsável por tão grande feito, o de ser uma imortal? Lygia escreveu até não poder mais. Lygia, podendo, escreveu absurdamente. Lygia me fez suspirar, me deu asas na mocidade, quando eu sequer sabia o que era viver. O ofício que escolhi, ou, poeticamente falando, para o qual fui arrebatado, é penoso, para se viver no mundo dos homens – vide o capitalismo, que não dá trégua para a imaginação; que se imagine, trabalhando, servindo à sociedade com algo palpável; “a literatura não é palpável”, dizem os farsantes; dela, não se pode comer uma lasca de fibra, morre-se engasgado, ou esturricado em fogueiras; enquanto, olha a ironia, a literatura, para mim – e para muitos –, é feita para viver intensamente e sair da esteira do banal. Lygia, quando tem algo a me dizer, fala baixinho, a declamar histerias nos nós do meu cérebro – tentando desatá-lo, libertá-lo. Por entre as letras, solta manhas agressivas e de grandes proporções, como se invadisse e habitasse um cenário antes devastado, iluminando tudo. Lygia é mais do que isso. Seria redundante se ficasse dando voltas para dizer o óbvio – e não quero que a leitora se farte de minhas insignificâncias linguísticas. Sou um reles escrevinhador dos tempos modernos, da tecnologia digital, que se sufoca por ter de atender as mensagens do celular e, por isso, frustra-se, qual uma criança birrenta, por ter de largar o ofício primeiro. Sabe-se lá, Lygia teve os seus percalços. Mas de quantos percalços salvou-se a si, outros e outras? Vou contar, aproveitando, uma historieta de mamãe. Ela tinha um troço de se afobar com as obrigações; falo de pagamentos, trabalho, e até mesmo em ocupar-se com os afazeres dos filhos. Um dia, quando chegou da labuta, atuando como professora de uma escola do Estado, disse, vivamente, que não queria saber de meninos, “só por hoje”. Relatou para o meu pai, queixosa e chorosa, que não tinha mais pique para pedir – ou se esgoelar nos pedidos – que os “santinhos” parassem de atrapalhar a aula; que aquele dia teria sido o pior de sua vida porque os “santinhos”, como ela se referia carinhosamente, não paravam de atazanar e de debochar de sua cara. Meu pai, sabido e aguardando o momento certo, ofereceu a belíssima oportunidade, em troca: que ela “pedisse as contas” do Estado e ficasse em casa zelando somente de seus meninos. Meu pai não esperava que, nessa ocasião, já bastante cansada, minha mãe pudesse virar uma onça. Ela voou para cima dele, com os dentes à mostra, gritando que não era mulher para ficar em casa paparicando os filhos e o “maridinho”; que era “passada na casca do alho”; e que, se estivesse achando ruim, poderia “pegar o beco”. Minha mãe ainda é pródiga em dizeres mundanos, para expressar fielmente o que sente, para descer o oponente ao chão, com o peso de sua raiva. Naquele tempo, pensei do que mamãe seria capaz de fazer com os seus “santinhos”. Eu tinha medo de que ela, tamanha a insatisfação e a cólera, pudesse ser punida, presa, e ficasse longe de nós. Daí, continuando a cena com o meu pai, ela falou, em prantos, que não teria amado a vida, para curar vidas carentes, se não fosse por Lygia Fagundes Telles. Minha mãe, pobre e pecadora, falou de sua salvação – não no sentido religioso, mas de ter conseguido escapar das tramas do crime. Queria, assim, que se tornasse a voz e o exemplo para subtrair aqueles “santinhos” do mal. Claro, minha mãe sempre foi uma mulher boa, amável; mas que não tocassem em suas feridas. Logo lembrei-me de que ela não atacaria criancinhas indefesas; nunca atacou sequer o meu pai, que era um brutamontes – no sentido da corpulência; não do coração. No instante quase final da discussão, arregalou os olhos, e mirou a mim: “Meu filho, você já está bem grandinho para ler ‘Venha ver o pôr do sol’ e se apaixonar!”. Decerto, deleitou-se com a deixa. Não entendi, de imediato, a indicação. Pouco tempo depois estava eu dominado e entregue às artimanhas de Lygia, agora minha amiga e amante. Hoje sou eu escritor e professor de literatura, do Colégio Estadual João Batista Nogueira, e tenho como princípio e objetivo salvar, quiçá, uma meia centena de vidas, todos os anos – sendo bem otimista.
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Adriano Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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Referências
CHISTÉ, Priscila de Souza. Catarse e ensino da arte. Disponível aqui. Acesso em: 19 abr. 2022.
LYRA, Bernadette. Afinal, para que serve a literatura? Disponível aqui. Acesso em: 19 abr. 2022.
NESTAREZ, Oscar. Lygia Fagundes Telles e uma aula de horror em “Venha ver o pôr do sol”. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2022.
TELLES, Lygia Fagundes. Os contos. Posfácio Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.