Coluna | Anseios Crípticos
O meu amigo, Joãozinho, com quatro anos a mais, foi a minha primeira referência em termos de gosto e de aventuras. Ele morava na casa da frente, ou seja, bastava atravessar a rua e daria de cara, primeiro, com o Edgar (seu tio), na porta, sentado, fumando um troço imenso, uma mistura de papel e folhas, falando desencontros com o tempo. Diga-se que o Edgar não fazia mal a uma mosca – só às plantas, que, quietas, não reclamavam da dor –; portanto, era, para mim, simplesmente, algo que me entretinha. Quase sempre era recepcionado pela dona Lourdes, mãe do Joãozinho, que me abraçava, cheirava, e, enquanto brincávamos, ela preparava uns quitutes gostosos. A casa era grande, com talvez cinco quartos, mas a questão é que eles tinham cinco filhos, alguns já adultos e casados, e esses moravam com as suas respectivas famílias nessa casa. Meu Deus, não queira saber da disposição das coisas, que dona Lourdes, muito preocupada, estava a postos para limpar, arrumar e zelar como fosse possível. Ah, um detalhe interessante: para evitar de a casa se transformar numa chaminé, sobrinhos e a dona Lourdes pediam para Edgar fumar na rua, o que de certa forma era atendido, com alguma demora. A questão, o que angustiava a dona Lourdes, em especial, mesmo não sendo seu irmão, é que Edgar poderia se debandar e passar dias e dias fora, e aí o aperreio vinha, o peso na consciência, porque não admitiam ter mandado embora um senhor de idade doente, lelé da cuca. Edgar sempre voltava. Eu o via quando saía da escola; quando ia ao centro da cidade; perto da igreja de Fátima; ou seja, era um ser onipresente. Mas um dia Edgar não voltou. O que haveria acontecido? Será que Edgar teria ido fumar em outras bandas? Algum carro o recolheu para o manicômio, sem a autorização da família? Sei que Edgar já era tido como um monumento, uma entidade do bairro. Todos passavam, sem exceção, e riam do seu porte elegante, do paletó rasgado, dos cabelos lambidos de sebo, da boca com dois ou três dentes, e da maneira de falar, desembaraçada, mas sem qualquer nexo entre as palavras. Não sei de onde ouvi a história: uns diziam que ele teria sido médico, ou tentado medicina, e não aguentou o rojão; outros diziam que ele era pugilista, dos bons, só que de tanto dar porrada e levar, sobretudo, ficou assim, desorientado. Não podiam simplesmente subtrair uma figura tão importante do nosso bairro. Não era admissível supor que tivesse sofrido algum mal – porque, como havia dito, ele era puro e dócil. Nesses dias minha mãe não me deixava ir à casa do meu amigo Joãozinho, e eu chorava implorando, porque queria abraçar a “vovó Lurde”. Ela decerto precisava do meu abraço, e isso eu sentia. Joãozinho, então, foi me visitar e brincar um pouco de videogame comigo. Não estava nada bem; confuso e disperso. Eu disse que, se não quisesse brincar, estava tudo bem. E tirou do calção um livrinho pequeno, com o título “Os olhos da anunciação”, de Edgar Costa Andrade. Sim, era um livro do famoso Edgar. Então, a verdadeira história foi revelada: Edgar, quando jovem, na cidade de Esperantina, no Piauí, era escritor, bastante respeitado, tendo cinco livros publicados, dois romances, dois de crônicas, e outro de contos. No entanto, um acidente quase abateu sua curta vida; ele tinha trinta anos. Um carro desgovernado, com um motorista bêbado, o acertou em cheio e o jogou para longe. Quebrou alguns ossos, mas o mais importante e delicado foi o crânio. Depois disso, não tendo mais parentes naquele estado, foi o jeito o seu irmão, Ednardo, o pai de Joãozinho, trazê-lo para Fortaleza. Desde bem antes de eu nascer, Edgar passeia incógnito pelas ruas da urbe, garboso, enfeitado, nobre no porte, e ninguém sabe de onde vêm esses trejeitos. Pequeno ainda, decidi contar a história desse outro Lima Barreto: como tantos, indigente, esquecido e menosprezado em vida; e, também, com histórias trágicas, penosas. Ah, para finalizar, tal foi a minha alegria ao terminar a triste brincadeira com Joãozinho e perceber que Edgar tinha voltado. Sua família estava em festa. Como não podia sair, fiz a festa no meu lugar, ansioso por ler “Os olhos da anunciação”.
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Adriano Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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Referências
Lima Barreto. Disponível aqui. Acesso em: 18 maio de 2022.
Lima Barreto. Disponível aqui. Acesso em: 18 maio de 2022.
OLIVEIRA, André de. Lima Barreto, uma voz que nasceu negra na literatura. Disponível aqui. Acesso em: 18 maio de 2022.