SOBRA-ME TUDO, A ARTE, E NADA MAIS – ADRIANO ESPÍNDOLA SANTOS

Coluna | Anseios Crípticos


Tenho um negócio com o sertão. Foi exatamente em 2018, tendo voltado da Espanha, emaranhado em um novelo de saudade, que resolvi, primeiro, visitar o meu lugar – falo de Quixadá e adjacências. A princípio, quem me conhece pode dizer que não tenho nada a ver com o sertão. Nasci e fui criado na cidade, em Fortaleza, achatado por blocos de concreto. Mas a questão fundamental é que meu pai e meu avô materno, duas pessoas que perdi e que muito amei – e amo –, nasceram no interior. As memórias que me acalentaram, provocaram catarse e alumbramento provieram, sobretudo, deles. Meu pai contava de sua saga para sobreviver numa família de quatorze filhos, tendo um pai “cigano” e uma mãe – claro – atulhada de serviço; ambientada na Serra Azul, conhecida também como Oiticica – que até hoje não sei bem se era um distrito de Quixadá. Sua irmã mais velha, Julita, bem mais velha, era casada com um senhor dono de uma mercearia, talvez a única do lugarejo. Meu pai, muito malino, com uns oito anos, volta e meia levava uns sopapos do dito senhor, porque enchia a mão de farinha e bolacha para comer em cima de uma árvore frondosa, distante de tudo e de todos; a sua maneira de se encontrar com o seu eu, pois que na maioria das vezes tinha de dividir as súplicas por carinho e comida com os demais. Julita, escondida do marido, era quem facilitava a empreitada. Meu pai, até quando pôde, morreu de amores pela irmã carinhosa e humana. Sobre o meu avô, que nasceu, como ele frisava, na seca do 15 – ou seja, em 1915 –, teve uma sina de ser o mais fraquinho de uma família de sete filhos, mas, ainda que cercado com todos os cuidados, tinha de entregar leite na vizinhança. Num dia chuvoso, foi mandado pelo pai ao trabalho, com os seus dez anos, e derramou o lucro – o leite – que serviria para o sustento da família, de uma semana. Castigado pelo pai, por outro lado foi infinitamente acolhido pela mãe, que livrou o filho doente da labuta injusta. Minha mente, portanto, tem desses quereres, que me fazem voltar, sempre. Morando em Salamanca, na Espanha, não havia o cheiro peculiar da ascendência; nada era do meu domínio; tudo era esparso e, de certo modo, sem sentido. Hoje, sei que era uma fase, e que deveria passar, para aprender; para desbravar, como eles fizeram. Foram imensos no desejo de conquistar o novo. Também tenho dos meus farnesins. Retornar a Quixadá, à Serra do Estevão, é como um abraço afetuoso que dou na minha infância e na minha herança. Desta feita, levei a tiracolo a obra completa de Raduan Nassar. Pouco sabia que a prosa poética iria abençoar e conduzir a jornada ao meu âmago. Ora, Lavoura Arcaica fala de deslocamento, novas vivências e assombros, uma comunhão absoluta com o que falei sobre os meus. Decerto, tiveram os seus dilemas e hesitações com a partida e a chegada, como aconteceu com André, em Lavora Arcaica; também sofreram com o autoritarismo e o abandono de suas figuras paternas. A verdade é que, depois que os meus amores partiram, sobra-me o sonho e a aproximação pela poética incrustrada nas coisas significantes, pelo apuro dos sentidos, como decifraram Roman Jakobson e Aristóteles. Sobra-me tudo, a arte, e nada mais.

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Adriano Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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Referências

GHANNAM, Tamy. O filho pródigo senta-se à mesa em LAVOURA ARCAICA, de Raduan Nassar. Disponível aqui. Acesso em: 09 jun. 2022.

NASSAR, Raduan. Obra completa. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

SILVA, Adilson Ventura da. A palavra poesia em Jakobson. Disponível aqui. Acesso em: 06 jun. 2022.

SILVA, Emerson Santiago. Poética (obra de Aristóteles). Disponível aqui. Acesso em: 06 jun. 2022.