PAULA – VALENTINA BASCUR MOLINA

Coluna das Ausências


Hoje estava prestes a escrever sobre outro assunto, mas tem coisas que nos atravessam sem aviso e se tornam urgentes. A morte é uma dessas ‘coisas’.

Paula Rego morreu recentemente e sinto que não posso escrever sobre outra coisa. É disso que se trata o imprevisível dessa vida, da morte sem aviso.

Ela é uma das grandes responsáveis da minha virada para as Artes Visuais. A conheci graças ao Núcleo Feminista de Dramaturgia, coletivo do qual faço parte, e que é coordenado pela poeta Maria Giulia Pinheiro. As suas imagens são incômodas, desconfortáveis. É o primeiro que vêm na minha cabeça quando penso em como falar sobre a obra da Paula. Imagens violentas. Violentas e cotidianas.

Paula Rego foi uma artista portuguesa, radicada na Grã-Bretanha a propósito do período ditatorial no seu país de origem (que foi desde 1933 até 1975). Acho que pouco conhecida na América Latina. Não sei dizer. Talvez a tenha conhecido por essa ponte Brasil-Portugal que alguns artistas possibilitam.

Quando a conheci me senti tão atordoada que quis correr atrás de mais antecedentes sobre a sua vida. Fiquei obcecada, muitos aspectos das suas obras me arrebataram. Descobri um documentário lindíssimo feito pelo seu filho, com entrevistas muito íntimas, onde Paula conversa com ele sobre a sua trajetória de maneira honesta.

A parte que mais me tocou foi a conversa em que ela comenta sobre as dificuldades de criar os filhos e trabalhar no seu ateliê de artista. Naquele momento, o marido e também artista Victor Willing foi fundamental na divisão de tarefas.

Várias das suas obras são dedicadas ao Victor Willing, quem morreu de esclerose múltipla em 1988. A Família (1988), Partida (1988) e O Cadete a irmã (1988) são algumas delas.

(Imagem do documentário “Paula Rego: Giving fear a face”)

(“Partida”, 1988)

(“O cadete e a irmã”, 1988)

O documentário “Paula Rego: Giving fear a face” trata precisamente sobre como através da arte, Paula conseguiu enfrentar os próprios medos. Muitas obras são inspiradas em histórias da infância, assim como pesadelos ou processos de luto, como a morte do marido. As mulheres do seu cotidiano estão sempre presentes nas suas obras.

Por mencionar mulheres do nosso cotidiano, Paula também retratou uma série de cenas de mulheres durante os processos de aborto clandestino (não custa lembrar quem são as mulheres que abortam clandestinamente nos nossos países. Sim, as do nosso cotidiano).

(Série sem título, 1998)

Costumo ter imagens como amuletos. Toda vez que olho para elas me provocam afetos diferentes. Sem dúvidas, a obra de Paula Rego que mais me marcou foi Dog Woman (1994). Quando a vi pela primeira vez lembrei da própria agressividade. Pensei naqueles momentos em que uma sorte de febre me invadia e me fazia latir que nem uma cadela. Lembrei de todas as vezes que me senti ameaçada. Compreendi que isso também se chama Autodefesa.

 (‘Dog Woman’, 1994)

(Paula Rego, 1935 – 2022)

Agradeço a Paula pela coragem imensa de enfrentar os medos, de dar-lhes forma, contorno, cores. As vezes nem tão nítidas, mas o suficiente para tornar-se mensuráveis e poder olhar-lhes no meio da face.

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Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.