NUNCA NEM SEMPRE É NÃO – RESENHA DE NUNCA ESTIVEMOS NO KANSAS, DE THÁSSIO FERREIRA – FÁBIO PESSANHA

Thássio Ferreira escreveu Nunca estivemos no Kansas (Patuá, 2022), embora não tenha andado por lá. Eu li Nunca estivemos no Kansas, e também não estive pelo Estado americano, embora tenha comparecido ao livro. Ambos comparecemos ao livro. O Thássio bem mais, por tê-lo deixado aparecer, tê-lo escrito, ter ido com a perna engessada ao Aterro do Flamengo para seu lançamento. Foi um dia bonito. Esses fatos me levaram a pensar que Nunca… foi um trabalho entalhado por uma certa ideia de privação, marcado pelo “nunca estar”. No entanto, uma privação alicerçada na afirmação positiva da engenharia compilatória, alinhavadora de paixão, tempo, espaço, amor e o que ficou por se dizer, referente ao estar aqui e acolá vivido no livro. As viagens e geografias físicas ou afetivas se entrelaçam. É um livro cuja perspectiva expõe a presença vigente no que ainda não é, retraindo-se no que aparece. Nunca… anuncia uma certeza, a qual vai definhando ao longo dos contos, transitando para um outro modo de se fazer existente.

Tecnicamente, Nunca… é nascido de alguns passados re-escritos, vividos ou inventados – nada mais real do que aquilo que inventamos. Contos premiados, redimensionados, além daqueles nascidos para não ser ou não estar no Kansas. E esse binômio negativamente verbal ao qual me referi – não ser/não estar – é proposital, uma vez que cheguei com minha leitura a essa fronteira vocalmente conjugada entre a assunção de uma posição político-amorosa e a transitividade por lugares estritamente reais ou ficcionais. Então, penso que no livro em questão ocorre tanto a ocupação de uma presença que se dá enquanto se esquiva quanto a espacialidade transitiva marcada pelas paisagens desenhadas na dicção do autor. Vale frisar que é quase um pecado (se este existisse) não nos lembrarmos de O Mágico de Oz ao lermos a frase final do conto homônimo ao livro: “Nunca estivemos no Kansas, Dorothy.”

No conto recém-citado, pode-se observar um mosaico criado ao longo das narrativas. Não à toa dele se elege o título do livro, isso porque creio se tratar de uma concentração nevrálgica, a imagem se tornando palavra, a vivência se derivando em experiência literária, a invenção fazendo jus ao seu lugar de reposição do real. Enfim, sem démodés literários ou acadêmicos, o “Qual foi?”, por exemplo, fazendo parte da jugular verbal da intolerância à diversidade sexual, coisa que pode rolar nas praias do Rio de Janeiro (gosto de pensar que no conto seja uma praia carioca devido às proximidades idio/letais, embora possa ser qualquer uma que não esteja no Kansas).

É um livro sem chegada. É possível pensar em destino como lugar para o qual se pretenda um regresso. Mas não no presente trabalho do Thássio. É quase como se pudéssemos cogitar uma tentativa de ficar positivamente à deriva, porque é isso que aqui importa: o entre, o deus-dará. Esse limite comparece de forma mais explícita em dois contos, cujos títulos são respectivamente “A (meio do) caminho” e “No (meio do) caminho”. Diria ser algo como o meio-termo entre partir e chegar mediante a tensão vigente no não estar. Esse “não” (fazendo as vezes do “nunca” do título) realça uma privação; contudo, privar algo de alguma coisa não significa apenas uma cessação, mas também a intensificação do porvir, em determinado contexto. Como exemplo disso, é válido lembrar o conhecido clichê que fala do caminho descoberto enquanto se caminha, ou do horizonte que se afasta na medida em que se vai em direção a ele. Lugares-comuns à parte (e são muito importantes quando bem colocados), essas geografias espaço-afetivas se estendem para outros aspectos, quando pelo uso das preposições “A” e “No”, em referência aos contos acima, se alcança o estado fronteiriço entre a hesitação do que está por vir e a assunção de um lugar, ambos reunidos pelo inconclusão, tão necessária à estrutura interna das narrativas.

Ocupa-se um modo de escrita quando aparecem as referências literárias do autor, como interferências que apontam para leituras anteriores. Desse modo, em “Mundinho” – conto imerso no espanto da linguagem –, a floresta e o rio se expandem para além do material. Mundinho, uma metáfora carinhosa para o desabrir gestual da experiência, carrega imagens na acepção lúdica do factível. O agora, os fatos, podem ser retraduzidos pela perspectiva emocional-poética de uma terceira margem revelada na decisão do menino-personagem:

— Bora, Mundinho. Despede da dona.
— Eu vou ficar, pai.

E fica. Mundinho abre mundos e ganha itinerários em seu lugar de espanto. A gente se encontra com gosto de Guimarães Rosa nos vestígios de Thássio. Como passar ileso pelo ilustre cordisburguense?

Também tem o Caio Fernando Abreu deixando marcas na escrita do autor de Nunca…, a saber, no conto “Ela / Ele” onde se instala o caráter irônico da apresentação de dois contextos de fala, partindo-se da perspectiva dos personagens Seu Cláudio e Irene. Em “Ele”, a apropriação do ponto de vista do primeiro – salvacionista, redentor – é interrompido pela brusca chamada de atenção: “— Seu Cláudio, tem mais d’um ano o senhor me paga a mesma coisa, toda faxina”. O tapa quebra o andamento do texto e prepara o próximo ritmo em “Ela”, no qual se emula o modo de falar de Irene. Nessa tensão é construída uma possibilidade de travessia entre a proposta autoral de escrita e a apropriação/invenção de idioletos. Ironicamente, Deus olha pra Irene, personagem, e diz vai. Ela foi. Ela disse pro seu Cláudio o que merecia ser dito, num acesso de assunção, do cotidiano falando alto, da necessidade disruptiva das falas necessárias tanto para a vitória do dia quanto para abrir nas palavras um circuito em que a ironia explode (n)a metáfora vocativa do diálogo. Isso porque também há uma apropriação melódica de um modo próprio/inventado do dizer dos personagens ao se tentar ilustrar o cotidiano de cada um.

Embora seja um livro de contos, a poesia comparece não como gênero, mas pela levada rítmica, pelo caráter questionador, próprio do poético. Muito se engana quem entende poesia apenas como categoria lírica. Há lirismo, mas não só. A poesia tem origem verbal, portanto, é criativa, gênese de movimento. É essencialmente pensativa, variando nos modos de esse pensamento aparecer. No caso do livro em questão, por um lado a pensatividade se apresenta na sua singularidade, nas emulações/invenções, apropriações necessárias ao andamento dos textos; por outro, na evidente convocação para olharmos com cuidado ao nosso entorno, às violências camufladas ou explícitas, à política que nos educa o ver e o agir. Nunca estivemos no Kansas oferece esse estado transitório do “não/nunca” como possibilidade. Então, que a Bruxa Má do Oeste não atrapalhe a estrada dos tijolos dourados que o livro nos convida a trilhar, mas desde que seja uma viagem onde fiquemos de olho no que a gente não alcança do que está prestes a nos ser.

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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens, Contempo, Poesia Avulsa, Quatetê, Arara, 7Faces, InComunidade e na própria Vício Velho.

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