CONCEIÇÃO – ADRIANO ESPÍNDOLA SANTOS

Coluna | Anseios Crípticos


Conceição. O nome tem a ver com concepção; fui buscar no dicionário. Um nome forte, é verdade, com o peso do mundo. Na minha casa trabalhou uma moça de nome Conceição, cuja figura quase esvanece da mente, não fosse a dureza no trato e a forma peculiar e objetiva com que tratava dos afazeres domésticos. Ela era faz-tudo: cuidava de mim e do meu irmão; limpava e arrumava a casa – uma senhora casa! –, para quando meus pais voltassem do trabalho estar tudo nos conformes; fazia o almoço – muito gostoso, por sinal. A referida moça apareceu, ao acaso, nos meus pensamentos, quando lia o conto Duzu-Querença, uma pérola de Conceição Evaristo. Aí, nas linhas aleatórias da consciência, deu-se a proximidade e a relação. As Conceições que conheço têm o alvoroço de Duzu. Obviamente, não são iguais, mas possuem um fio que as conecta, o sofrimento para garantir a sobrevivência. Como a Conceição da música interpretada por Cauby Peixoto. Quando as sinto, tudo é sofrimento. Empatia, quem sabe, o nome disso. A Conceição que morava em minha casa vinha de uma cidade do interior do Piauí; se não me engano, Esperantina. Uma das cenas de que me lembrei, um dia desses, que ficou muito marcada, foi quando Conceição quis ir embora, após chorar dias e noites, para a sua terra natal. Minha mãe, tentando apaziguar os ânimos, perguntava insistente se o problema era a casa, a gente, e a moça simplesmente balançava a cabeça em sinal negativo. Eu tinha, talvez, cinco ou seis anos. O episódio quedou mais triste porque o meu irmão chorava, parecendo que absorvia as dores de Conceição. Ela resolveu permanecer mais um tempo. Nesse período, andava cabisbaixa e desconfiada. A razão, sufocada ao máximo: estava grávida e tinha medo de ser botada para fora, ficar no meio da rua; ela revelou à minha mãe, numa de suas conversas. Quando descobrimos, já era quase nascimento. A menina nasceu forte, gordinha, e, para nós, falo de mim e de meu irmão, era uma irmãzinha, que tanto desejamos ter. O pai da pequena Sabrina, segundo ela, era um homem casado, que conhecera numa de suas raras saídas. A dor, portanto, era porque não teria a sua família, e veria a história se repetir, porque ela própria era filha de uma relação casual. Conceição ocupou um quarto da casa, que era usado para as brincadeiras e para uma espécie de depósito. Arrumou-se tudo; era um lugar novo, apto a receber a mãe e sua menina. Ainda assim, Conceição conservava-se silente, apática, muito distante. Lógico, deixou de dar atenção ao meu irmão, que devia ter, à época, três anos. Houve ciúmes e birras por isso. Ele intuiu que a menininha era uma ameaça, ou uma barreira para a sua querida “Ceiça”. Foi uma ocasião tensa. Minha mãe gostava da Conceição; era nítido. Ela queria dar um jeito, com os recursos que tinha, oferecendo o conforto de um lar minimamente seguro, estável, não fossem as escapulidas de meu pai. Percebendo que o desgosto de Conceição nos afligia, minha mãe a cingiu em maçantes conversas, até que a faz-tudo, talvez se sentindo pressionada, decidiu sair. Não seria de um dia para a noite, mas tudo indica que Conceição entendeu que devia nos desincumbir de maiores aperreios. Depois que partiu para o incerto, até hoje não se tem uma notícia. Quando li a saga de Duzu, pensei se Conceição não teria caído em uma armadilha; se ainda era viva; se a filha, Sabrina, teria o mesmo destino. O que lhes aconteceu? Li “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo, e não contive as lágrimas, como o título sugere. Cada conto demonstra o fado de realidades profundas desses brazis. Foram muitas pessoas que passaram por minha vida, e tantas estão descritas, de um modo ou de outro, mesmo em fragmentos miúdos e esparsos, no dito livro-redenção; a redenção que se quer por gritos e clamores; a redenção pelo desejo ínsito de existir. Conceição, como a Evaristo, foi empregada doméstica; é mãe, mulher negra. Conceição, quiçá, o sinônimo de redenção.

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Adriano Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

Fotografia: Joyce Fonseca, (Flickr / Instagram)

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Referências

AMORIM, Jair; Dunga. Conceição. Intérprete: Cauby Peixoto. Disponível aqui. Acesso em: 14 jan. 2022.

Conceição Evaristo. Disponível aqui. Acesso em 14 jan. 2022.

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016.

PaimL. de L.; Viero FerreiraP. DO ABANDONO À DECADÊNCIA: DUZU-QUERENÇA E SUA VIDA DE ABUSOS, VIOLÊNCIA E MISÉRIA. Revista (Entre Parênteses), v. 6, n. 1, 18 dez. 2017.