PREMONIÇÕES – VALENTINA BASCUR MOLINA

Coluna das Ausências


 

Existe algo de premonitório na escrita que me assusta. Parece que o tempo ocorre de uma forma outra, e às vezes volta como um bumerangue. Quando releio meus textos, vejo o quanto estava escrevendo para mim mesma, mais do que para os outros. Isso foi assustador também.

Há meses atrás apresentei neste espaço a poesia de Cristina Peri Rossi, e escolhi o poema Derrota, porque sinto que reflete de forma honesta os fenômenos do coração. Uma paixão que nasce e morre com a mesma intensidade. Amores fadados ao fracasso. Escolhi o poema Derrota porque apesar de doloroso, me pareceu lúcido.

En el amor está inscrito el desamor
como las placas en el caparazón
de los galápagos.
Como los años
en los surcos del tronco de los árboles.

En el amor está inscrito el desamor
como el ocre en el ocre
como las huellas de una pintura
en la pintura
como el texto
en el palimpsesto.

Ninguna inocencia
en mi mirada enamorada
sin querer
descubro
que los ojos que amo
serán un día los ojos por los que dejaré de amarte
y la risa que hoy festejo con alegría
será la que me alejará de vos.
La caricia que anhelo
mañana me dejará indiferente
y las noches de deleitoso placer
serán las pesadillas al despertar.

En el amor está inscrito el desamor
como en la vida está inscrita la muerte.

“Derrota”, Cristina Peri Rossi (2004).

E agora esse poema volta como balde de água fria, se torna real e encarnado. Consigo escrever pouca coisa acerca dele pois parece que se enfiou dentro da minha pele que fala por si só. É a impermanência arrebentando a porta, sem pedir licença. É o sentimento de Derrota por aquilo que se perde, pelas coisas que morrem de forma irremediável.

Talvez não foi à toa que passei os últimos anos pesquisando sobre luto e morte. São temas que me atraem, que impulsionam a minha criatividade. Mas a dor da perda é sempre a mesma, inexplicável.

Há também uma espécie de aconchego na escrita, apesar desse seu tempo ser autônomo e intempestivo. Lembro das vezes que mergulhei em romances imensos porque o cotidiano parecia ser insustentável. Devorei as quase mil páginas de Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves no pior verão da minha vida, e abracei o romance Love da Toni Morrison para espantar solidões (devo muito à Toni). Li o Ano do Pensamento Mágico de Joan Didion para me despedir de cidades passadas. E hoje estou aqui, novamente atravessando o luto, e como bem diria Didion, tentando soltar aos mortos.

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Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.