‘As mulheres são todas iguais’ começa Mar Becker lançando a primeira pedra. Não sabemos se está afirmando apenas um clichê ou querendo subir em cima dele para nos provocar. Poesia permite múltiplas interpretações, e A Mulher Submersa (2020) chega como um enigma. Tenho lido por retalhos, aos poucos, como quem se serve um gole intenso e amargo.
as mulheres são todas iguais
todas, sem exceção. as de ontem, iguais às de hoje, as de hoje iguais às de amanhã.
que não se engane o meu amor, porque em breve a ex dele voltará através de mim,
para dizer pela minha boca o que não pôde dizer pela sua.
eu farei o mesmo, pela boca da próxima
e assim sucessivamente
é uma maldição
entramos na vida de um homem como se fôssemos uma só
com o passar do tempo acabamos nos tornando sempre a mesma
juramos sempre o mesmo amor no começo
rogamos sempre as mesmas pragas
antes de bater a porta no final
sempre a mesma garganta
a mesma língua de gárgula.
As vozes de mulheres vão se atualizando, assim como as violências.
Estou há tempos me perguntando se a nossa única possibilidade de interlocução será a partir da ideia de que somos corpos passíveis de luto e violência. Tento manter um horizonte amplo na hora de questionar. A vida das mulheres não é apenas um ciclo que se repete, porque, bem sabemos, o tempo – e a escrita – são intempestivos, obedecem a uma ordem outra.
Assim como as violências se atualizam, a autodefesa também.
La vida no es más que un par de golpes
contra la pared
o contra el cuerpo del otro
que es uno mismo.
Unas manchas de sangre en la cara
en la cama
en las manos.
Un pronunciar tu nombre mientras caemos
derrotados del espejo a los abismos.
Kewakafe1 é o livro mais recente da poeta Mapuche-Huilliche, Roxana Miranda Rupailaf. Como sou a sua fiel aprendiz, tento seguir todos os seus passos, e apresentei ela pela primeira vez na coluna chamada ‘Azia’ no ano passado. Nesta nova obra, inspirada no boxe, a autora continua tecendo fios entre o erótico, os corpos, a violência e a morte.
Para golpear hay que bailar un poco con el oponente
mirar su rostro mientras giras
tratar de romper esa hermosura.
Medir con los brazos el desastre.
Hablar poco.
Girar y mirar al oponente.
Estar atenta a la posibilidad del golpe
rechazar todo contacto.
Para golpear no hay que perder de vista al contrincante.
Hay que girar con él en el cuatrilátero sin amarlo.
Roxana nos apresenta poemas em que os corpos se encontram em constante tensão e enfrentamento. Assim como nos nossos corpos as violências se atualizam, a possibilidade de autodefesa estará sempre latente.
A vulnerabilidade nos atravessa todos os dias, não existe aquele momento em que estaremos prontas para enfrentar os nossos medos. Prefiro, ou melhor, decido acreditar que saberemos nos defender.
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1Kewakafe: Do mapudungun (língua ancestral mapuche), significa ‘a arte de fazer a guerra’.
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Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.