Coluna | Anseios Crípticos
Podem supor que sou bonzinho, com essa cara de disfarce, que aprendi a fazer. Mas, não, eu tive generosas doses de maldade e perversão, quando criança. Não conto as vezes que matei lagartixas para exumá-las, para saber de seu conteúdo por dentro. Não gosto de falar, por nojo, do tempo em que confinávamos, eu e meu irmão, a maior quantidade possível de sapos, como numa espécie de disputa, no alto da Serra do Estevão. Aplicávamos sal, em suas costas, porque adorávamos vê-los se contorcendo de dor. Dizem que é na madureza que se aprende a essência da civilidade. Pois sou um pretenso e completo transviado das convenções mundanas. Ainda sou de aplicar as minhas iniquidades: no texto. Sou escritor. Essa é a minha natural maneira de atacar, ferir, horrorizar. Matei muitos, por puro amor ao ócio, à depravação, e, depois, dependurei-os nas finas linhas dos meus escritos, como a expor um Mussolini em praça pública, para verem do que sou capaz. No auge do meu caminho para a velhice compreendo que sou feroz na arte de espicaçar olhos flamejantes; um corvo na famosa cena da crucifixão, atacando um ladrão não convertido. Não. Nada. Leitora, quero lhe convencer de que sou mau. Cansei da aparência de bom menino. Já passei da idade de transgredir na vida real. O que seria desse maldito escritor se não fosse a voz de Rubem Fonseca a reverberar na minha mente: “Mata! Esquarteja! Enlouquece!”?! Nos idos de 2000, lembro-me que vi uma entrevista do mencionado escritor; um evento raríssimo, dada a sua exclusão do mundo. Parecia um senhor engraçado, pouco afeito ao mal; diria até que poderia, muito bem, se passar por inspetor de polícia, algo do tipo. Mas aí tive a curiosidade de ler um de seus contos, veja só, “Feliz ano novo”. Conheci Zequinha e Pereba, e a potência, no ato, me tomou: “Preciso extravasar as minhas dores e raivas. Vou escrever. Sim, escrever; disso eu sou capaz”. Quis satisfazer-me ao pensar que estaria habilitado a enlouquecer nos meus escritos malditos. Botei Josué, um pedreiro, arregaçado, de pernas para o ar, na sala de seu barraco. Joguei Cíntia numa cacimba, vítima da estupidez, de sua mente endemoniada. Reparti Bernardo em pedaços e conduzi Raimundo, seu criado, a jogar os fatos para os jacarés comerem, bichos medonhos de sua estima e criação. Em todas essas cenas, montadas na minha cabecinha, era como se recebesse, em alguns momentos, a entidade de Rubem Fonseca, de quem havia me tornado íntimo – somente lendo as suas desgraças. Em sonho, também, ele chegou a me chacoalhar e bater: “Deixe de ser bobo, mocinho. O mundo já está infestado de flores!”. Cada vez mais sentia o chamado para o sangue, para o absurdo, para a bestialidade. E como isso foi cômodo, adequado; tornei-me um ser agradecido ao destino, por ter me liberado a essas linhas mortas – ou de morte. Sinto por quase ninguém ler o que escrevo. Vez ou outra, mando uns contículos para revistas literárias, e quase sempre me respondem com contragolpes automáticos: “A próxima edição está fechada. Retornaremos se, por acaso, couber no tema de alguma edição futura”; ou seja, de um futuro que nunca chega. Enquanto isso, vou alimentando os arquivos de livros: são quinze. Faça as contas: escrevo em média um conto por semana; labuto na escrita, fodido, desde 2000, por aí. No plano dos mortais, vou passando ileso; enquadram-me: normal.
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Adriano Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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Referências
FONSECA, Rubem. Correntes d’Escritas 2012 Póvoa de Varzim – Portugal. “Todo autor é louco”. Disponível aqui. Acesso em: 12 ago. 2022.
FONSECA, Rubem. Amálgama. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.
FONSECA, Rubem. O melhor de Rubem Fonseca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.