Coluna | Anseios Crípticos
Semana passada morreu A Rainha. Poxa, fiquei pensando, até as rainhas morrem. Quantas não morreram de lá para cá?! A despeito de melhores atendimentos e hospitais, com médicos renomadíssimos, morre-se uma por vez, de quando em quando. É claro, nasce-se também; ainda está para nascer a próxima privilegiada. Por isso a dosagem assimétrica do tempo, que, no final das contas, equilibra, como pratos suspensos ao alto, a lonjura das pessoas. Pode ser que haja um deus ou uma deusa que rebente a haste dos pratos suspensos, para que a morte seja rasa e acabe com o sofrimento de alguns. Minha avó não teve a mesma sorte da Rainha, que viveu noventa e seis anos – setenta só de reinado. A simples senhora viveu, como pôde, até às portas de oitenta e dois anos. Foi mais generosa que a Rainha, teve dezoito filhos; despejou sementes pelos Brasis; logo quatro morrendo de não saber viver. Meu pai, o penúltimo, falava de uma mãe dignamente brasileira, que suportava os fastios da vida por não ter o que comer – deixava o melhor para os filhos, que também mal comiam. A Rainha tinha palácios além-mar, inclusive. Vó tinha uma penca de menino e um casebre na remota Fortaleza, num bairro que não existia. Falarei só uma linha sobre o meu avô; não carece mais: era de se debandar para o mato, à procura de sorte, e voltava, como meu pai dizia, para fazer menino(a). Vó era quem segurava o tranco. As filhas mais velhas ajudavam na repartição das tarefas; novas aprenderam a ser mães. Pai falava da vó Lulu, da mãe/irmã Julita e da mãe/irmã Iracema. “Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem”; e nenhum dos filhos/irmãos mais velhos assumiu a tarefa que cabia ao pai. Meu pai era Pai, e aprendeu com várias mães o valor do amor. A Rainha, se tossia, já tinha um mordomo, um médico e um sobressalente para acudi-la nas gravidades, imagino. Como suponho que vó tossia, mas se preocupava primeiro com a tosse dos filhos; a saúde é sorte que se arruma quando dá. Vó não teve distinção por sua bravura; rei ou rainha lhe deu um título por isso, ela foi e pronto; nasceu brasileira, que jeito!? Dias e dias serão dedicados à passagem da majestade. Vó teve os gritos e a dilaceração dos seus, numa sala escura, no apartamento da minha tia. Num dos intervalos dos sobressaltos, escutei uma prima me dizer: “Chora, menino! Tem de chorar!”. Eu tinha sete anos e não sabia o porquê das coisas. Nessa excitação dos dias, lembro-me de que “Mulher é desdobrável. Eu sou”, de Adélia Prado, como se vó me revelasse, numa conversa íntima, que se desdobrou para ser exatamente o que foi.
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Adriano Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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Referências
FRAZÃO, Dilva. Adélia Prado – Escritora brasileira. Disponível aqui. Acesso em: 14 ago. 2022.
FUKS, Rebeca. 9 poemas encantadores de Adélia Prado analisados e comentados. Disponível aqui. Acesso em: 13 ago. 2022.
REBINSKI, Luiz. Sem ponto final – Entrevista. Disponível aqui. Acesso em: 14 ago. 2022.
█ Foto: Divulgação/Bienal do Livro de Brasília