Coluna | Anseios Crípticos
Fico pensando se alguma coisa breve pode explicar o sentido de existir. A vida, em si, é ínfima, e não responde o enigma fundamental. Os gregos, em seus gritos aos deuses, sequer deixaram pistas – se deixaram, não as deciframos: nós, os mortais. Qualquer eflúvio fugaz pode dilatar os caminhos? Não sei. Eu mesmo não os sinto. Aliás, não sei se fui soterrado pela covid; se o mínimo elã que possuía se perdeu. Esses são dias particularmente intrigantes, que denunciam o mal à espreita. O mal já nos acompanha há quatro anos e pretende se instalar de vez. Trinta de outubro será a cartada final, para, quem sabe, desterrar os sinistros agouros que nos rondam – se é que me entende, leitora. Estou cansado ao extremo. Não consigo me contentar com a luz do sol, com a expectativa de uma gota de orvalho a cintilar os becos das emoções. Sim, posso estar doente; é bem provável que sim – quem não está? Loucura é pensar que, em meio a tamanha desgraça, possam estar coexistindo o sucesso e a esperança, porque “o Brasil está dando certo”, como proclama o cavaleiro das trevas, que ora nos governa. A certeza de que estou vivo não se dá pelo simples fato de acordar; o que faço a seguir, no decorrer do dia, é o que me interessa. Tenho feito manobras cirúrgicas para me manter em pé. Leio autoras e autores brasileiros contemporâneos, como Cinthia Kriemler, Tiago Feijó, Leonardo Almeida Filho, e intercalo em dignas horas com A Divina Comédia, de Dante, ou com algum russo da Era de Ouro, coisa assim. Mas o que tem entrado de maneira contundente, instigando as vísceras, com a literalidade da palavra, é a poesia marginal de Paulo Leminski. Claro, ele diz-sem-dizer a poesia; é preciso pinçar o que supura e sobeja, para identificar o que vem de dentro da escuridão. Aprendi a reconhecer que nem tudo que excede é desperdício; nem tudo que é comida alimenta; nem tudo que é dito é palavra. Quantas vezes caí no engano de mirar a superfície e me contentar com o óbvio? Ah, a sapiência e a beleza de se resgatar da noite densa. Há quanto tempo não me sinto? É o que busco: sentido. “Essa minha secura / essa falta de sentimento não tem ninguém que segure, vem de dentro. Vem da zona escura / donde vem o que sinto. Sinto muito, sentir é muito lento”.
“M. de memória
Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Troia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda”.
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Adriano Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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Referências
HÉLIO. Paulo Leminski. O bandido que sabia latim e y otras cositas más. Disponível aqui. Acesso em: 13 out. 2022.
LEITE, Carlos Willian. 15 melhores poemas de Paulo Leminski. Disponível aqui. Acesso em: 13 out. 2022.
MELO, Tarso de. Por que amamos Paulo Leminski? Disponível aqui. Acesso em: 14 out. 2022.
Imagem: Museu Campos Gerais