Coluna | Terra Treva
O segundo dia de novembro costuma ser de lembranças. É o Dia de Finados, feriado religioso reservado à memória de quem se foi. A prática remete ao século 5, quando a Igreja Católica passou a dedicar um dia do ano a essa finalidade. Desde então, costuma ser uma data pesarosa, melancólica – isto, claro, se você estiver no Brasil ou em qualquer outro país que tenha essa interpretação. Porque, caso esteja no México ou em lugares que celebram o Dia dos Mortos, a história é um pouco diferente. É tempo de celebração, de receber a visita daqueles que já se foram e que, ao menos por um dia, podem retornar.
Por lá, a data nada tem a ver com catolicismo. É de origem indígena mesoamericana, isto é, vem de astecas e maias, e corresponde à cosmovisão dessas culturas, para as quais a morte não tinha as conotações morais da religião cristã. Nada de Inferno ou Paraíso, nada de punições ou recompensas pós-morte. A percepção da morte é muito diferente da nossa. Assim sendo, o dia 2 de novembro representa um feliz reencontro, e é por isso que a data, no México e em vários países do mundo, marca uma das festividades mais vibrantes do ano.
Dentro das histórias de horror, o retorno dos mortos é um topos tão antigo quanto recorrente. Basta pensarmos nos zumbis e nos fantasmas, que estão por todos os lados já há muito tempo. E para celebrar literariamente este segundo dia de novembro – seja pelos finados que pranteamos ou pelos mortos que voltam para festejar o reencontro conosco –, sugerimos a leitura de um conto no qual o retorno dos que já partiram é tratada de maneira original e, claro, arrepiante: “Repique macabro”, do inglês Robert Aickman (1914 – 1981).
Publicada pela primeira vez na Inglaterra em 1964 em uma coletânea chamada Dark entries, a narrativa só apareceu no Brasil (e em língua portuguesa) em 2021, graças à iniciativa das editoras Ex Machina e Clepsidra, que lançaram por aqui a coletânea Repique macabro e outras histórias estranhas. São nove contos extensos, todos inéditos em português, deste que é um dos melhores estetas do horror do século 20 – ou das histórias estranhas, como o próprio autor as chamava.
Antes, cabe um comentário pessoal a respeito de “Repique macabro”: foi o primeiro conto que li de Aickman após comprar uma edição de Dark Entries em 2016. E nunca me esquecerei da experiência. Fazia tempo que não sofria um impacto tão poderoso durante uma leitura, e levei um bocado de tempo para compreender exatamente o que aconteceu – se é que compreendi. Ainda hoje, seis anos depois e tendo lido boa parte da obra de ficção do escritor inglês, tenho a impressão de que sequer resvalo a superfície do mistério.
O enredo de “Repique macabro”, relatado em terceira pessoa, é simples. Um casal sai em lua de mel pelo interior da Inglaterra e chega a Holihaven, uma pequena cidade litorânea. Mas desde o início algo estranho está acontecendo: os sinos das igrejas locais não param de bater. O fato só parece incomodar Gerald, o marido e protagonista; Phrynne, sua jovem esposa, não parece ligar.
Após caminharem por ruas vazias e sinistras, eles chegam ao hotel, onde se deparam com personagens inquietantes: os proprietários Sr. e a Sra. Pascoe e o único hóspede, o comandante Shotcroft. Os três se mostram esquivos, sempre escapando pela tangente das perguntas objetivas feitas por Gerald, em especial a respeito dos sinos, que não cessam por um segundo sequer. Somente após muita insistência do protagonista é que o comandante Shotcroft dá uma pista: “Eles estão tocando os sinos para despertar os mortos.” Os dois conversam em frente à lareira no saguão do hotel enquanto Phrynne dorme. E Gerald ouve que precisam sair dali o quanto antes, principalmente por causa da esposa.
À medida que a história avança, o mistério vai se adensando e as perguntas se multiplicam. Por que dobram, de fato, os sinos? Por que as personagens se comportam de forma tão elusiva? O que está acontecendo com Phrynne, que não parece ligar para os badalos e vai se revelando estranha ao marido? Aickman espalha possíveis soluções pelo caminho, mas não se detém em nenhuma delas, em uma técnica narrativa que domina como poucos. A desorientação durante a leitura é a tônica – mas é uma desorientação que nos atrai, pois a atmosfera nos mantém grudados ao desenvolvimento.
Uma das chaves interpretativas parece ser a diferença de idade entre o casal. “Ela é vinte anos mais jovem que você e, por isso, vinte anos mais importante”, diz Shotcroft ao justificar porque deveriam ir embora o quanto antes. Porém, não conseguem partir, pois não há táxis disponíveis para levá-los. Em certo ponto, os sinos silenciam e os Gerald e Phrynne, já aconchegados em sua suíte de núpcias, começam a ouvir passos pelas ruas. Uma voz estridente anuncia, repetidas vezes: “Os mortos despertaram!”
Chegamos ao clímax da narrativa. Inicialmente, o casal, na escuridão do quarto, apenas ouve a procissão que se forma lá fora, com gritos indistintos e estardalhaço. Logo a multidão passa a cantar e a dançar. Palavras se fazem ouvir: “Juntos dançavam vivos e mortos nesse tempo / Aqui é o lugar, agora é o momento”.
A procissão começa a se aproximar, o que se intui pelos barulhos cada vez mais altos, até invadir o hotel. E aqui o suspense se converte em horror. Um fedor “obsceno, indescritível” antecede a multidão, que acaba por entrar no quarto do casal, cada vez mais numerosa, balançando e se esbarrando. A escuridão impede que se distingam os “dançarinos” – o caráter elusivo das personagens agora se espelha nas monstruosidades – e Phrynne é levada por eles. Gerald, desesperado, afunda-se em meio aos lençóis enquanto o pandemônio atinge o ápice e depois vai perdendo força.
Em certo momento, o comandante aparece e diz que Phrynne está a salvo, aguardando-o no andar de baixo. “Ela estava entre dois deles. Cada um segurava uma das mãos dela”, afirma Shotcroft. Gerald a encontra vestida com um sobretudo de outra pessoa, bebendo, lânguida e descontraída. Segue-se um breve epílogo no qual o casal vai embora de Holihaven logo ao amanhecer, e Gerald percebe uma mudança na esposa: “tornara-se consciente de que algo os separava, e que nenhum deles jamais mencionaria ou esqueceria”.
O que era esse “algo”? Uma alegoria para um rito de passagem? Algum fetiche que atraíra apenas Phrynne? Teria ela sido transformada em uma “dançarina”, o que equivaleria à morte? Mas seriam os dançarinos de fato mortos ressuscitados ou algo além? Pode apostar: buscar as respostas dentro de um universo ficcional tão bem elaborado, tão cheio de reentrâncias – e tão macabro –, é uma das melhores formas de celebrar este dia dos mortos.
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Oscar Nestarez é pesquisador e escritor da ficção literária de horror. No campo da pesquisa acadêmica, possui Mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e atualmente cursa Doutorado pela USP, tendo como objeto de estudos centrais a obra de Edgar Allan Poe. Como ficcionista, publicou Poe e Lovecraft: um ensaio sobre o medo na literatura (ed. Livrus, 2013), as antologias Sexorcista e outros relatos insólitos (ed. Livrus, 2014) e Horror adentro (ed. Kazuá, 2016), e o romance Bile negra (ed. Empíreo, 2017), além de contos em diversas coletâneas. É também colunista da Revista Galileu, em que aborda temas da ficção de horror.