VÓRTICES – ADRIANO ESPÍNDOLA SANTOS

Coluna | Anseios Crípticos


Sou um poeta arterial, molambo, posso dizer assim. Rejeitei, como filosofia de vida, o excesso. Nunca guardei sequer um trago no bolso. Tudo que era meu era muito mais dos outros; se servia para mim, tinha mais serventia para o outro. Mendigo, andarilho, cavo algum trocado nas esquinas de becos imundos, cheios de homens de negócio. Certos figurões passam esbanjando e não dão a mínima para mim. Um, escondido num paletó fino, jogou uma bituca na minha cara, ontem, e o agradeci por ser ao menos confundido com um cinzeiro. São mesmo os estagiários, os subordinados, que me regalam com comidas, muitas vezes, e umas moedinhas que troco por uma sopa ao fim do dia. Há trinta e dois anos, quando me decidi pelo ostracismo, não pensei que o mundo poderia ser tão cruel. Viveria, ao meu juízo, uma experiência poética na carne. Aguentaria os maiores perrengues por amor à Arte. Lucila, minha grande amiga, chegou ao ponto de pedir a um advogado seu que conseguisse a minha interdição; confundia isso com loucura. Como nos estranhamos amargamente, ela me largou de mão. Augusto, tão generoso, me pediu para não ir tão longe nisso, porque julgava, com razão, que, passados anos, poderia resultar numa temeridade irreversível. Eles, decerto, tentaram me procurar, mas não têm como saber do meu paradeiro, e todo esse tempo me tornou desfigurado; perdi minhas impressões digitais. Pensei em entregar a minha experiência à morte, para o fim digno do completo esquecimento. Um bom resumo, no entanto, é que alunos da Universidade Federal daqui me descobriram há dois ou três meses, e querem preparar uma exposição, com a minha presença, para que demonstre a minha Arte a uma banca renomada de professores brasileiros e do exterior. Recuso, educado, com cautela e afabilidade; são somente seres em construção. Eles conhecem o que é poesia, no sentido literal, mas não têm a dimensão do que seja poesia como alma, animus existencial. E não suportaria que algum professor vaidoso – porque sempre há o sujeito tendente à fama – levasse os louros pelo meu trabalho; ou seja, que me usasse como trampolim. Mudo de lugar todo dia para que me deixem viver. Meus amigos, hoje, são Lourdes e Jakson, moradores desse mundão, avulsos como eu. Lourdes é artesã de BH, e vive nessa cidade, perambulando, porque diz que o Nordeste é o chão de seus antepassados; que encontrou a harmonização de sua aura com o ambiente; que precisa, por crenças indígenas, ser enterrada em sua Pachamama. Jakson é artista de rua, um garoto ainda, tem cinquenta anos. É de Bogotá. Falamos mais em castelhano, por questão de afinidade. Ele relata que, de todos os lugares em que viveu, foi aqui que encontrou certo sossego; que é recebido pelas pessoas como ele, humildes, e se sente em casa; que tem o desejo de fincar raízes, constituir uma família. A verdade é que já me “desfiz” de inúmeros amigos; não posso me apegar – é também um lema da minha experiência. Lourdes e Jakson são os mais duradouros ao meu lado, dez e doze anos de convivência. Mas é em Augusto – aquele mesmo – que encontro as melhores lições sobre a poesia e a vida. Ele resolve, como nenhum outro, a questão da completude e da concretude, sabendo que a poesia está em tudo e não carece de nada. Eu que preciso do seu toque sobre a minha pele, do seu olhar sacro, para perceber se estou vivo e útil para a poesia. Quiçá possa entregar aos alunos e professores da Universidade Federal os meus escritos, a minha confissão de vida, para que consiga, ainda, beijar a mão de meu mestre. Augusto, soberano arquiteto da essência.

“O Vivo
Não queiras ser mais vivo do que és morto.
As sempre-vivas morrem diariamente
Pisadas por teus pés enquanto nasces.
Não queiras ser mais morto do que és vivo.
As mortas-vivas rompem as mortalhas
Miram-se umas nas outras e retornam
(Seus cabelos azuis, como arrastam o vento!)
Para amassar o pão da própria carne.
Ó vivo-morto que escarnecem as paredes,
Queres ouvir e falas.
Queres morrer e dormes.
Há muito que as espadas
Te atravessando lentamente lado a lado
Partiram tua voz. Sorris.
Queres morrer e morres”.

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Adriano Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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Referências

AMARAL, Beatriz H. Ramos. A poesia intersemiótica de Augusto de Campos e a plena realização da verbivocovisualidade. ISSN 1982-6850. Eutomia, Recife, 28(1): 44-62, dez. 2020.  

CAMPOS, Augusto de. Disponível aqui. Acesso em: 16 nov. 2022.

Cinco poemas de Augusto de Campos. Disponível aqui. Acesso em: 16 nov. 2022.