Coluna | Anseios Crípticos
Poucas coisas me dão o alento de estar impregnado de magia. Noite adentro escutava os sons dos bichos noturnos. Eram cigarras, corujas, morcegos e batidas de asas de pássaros se arrumando em seus poleiros para dormir. Na minha casa havia, no quintal, um pé de jambo, que abrigava, talvez, boa parte dos bichos que voavam na região. Mamãe achava aquilo uma exuberância. Pedia que ficássemos em silêncio contemplativo. Mudou a única televisão para a sala, bem longe do quintal. Fechava a porta da cozinha, para que não desse na telha dos meninos a astúcia de ir bolinar por lá. Corriam todos para a rua, pouco movimentada, cheia de luz da lua e de vento fresco. Posso dizer que nossa casa se situava num lugar baldio, abandonado pela cidade-metrópole. Para se ter uma ideia, quando precisávamos, tínhamos de pegar uma condução de uma hora para o Centro da cidade, à procura de médico ou quinquilharias para nos abastecer. Papai, que trabalhava de vigilante de uma pequena indústria, era, por isso, ressabiado; tinha medo de tudo; não tolerava a nossa inquietação. Felizmente, ele passava o dia dormindo, só nos via à tarde; à noite, pelas 20h, ia para o serviço, e assim começava tudo de novo. Foi, em nossas vidas, uma presença rarefeita, quase um prenúncio de solidão. Mamãe nos amava muito, para permitir que seus filhos se perdessem na noite. Sendo a mais nova, paparicada, eu ficava ao seu lado; não tinha idade para aventuras – apesar de meus treze anos. Dorinha, minha querida professora, sabendo que eu gostava de ler, emprestou-me “Dias e Dias”, de Ana Miranda. Disse que eu podia ficar, no começo, entediada, mas que do meio para o fim a leitura me gratificaria. Meus irmãos me chamavam de besta e atrevida, porque eu “queria me amostrar” com esse gosto inusitado pela leitura. Depois de Machado de Assis, suponho que tenha sido este o legítimo encontro com a fantasia verdadeira, que atiçou os meus sentidos, ainda em ebulição. O que eu sentia por Alano, um amiguinho da escola, era algo surreal, como um amor platônico e dantesco. Não dividia isso com ninguém. Via-me, portanto, na pele de Feliciana para com o seu Antonio. A diferença era que Alano não sabia das minhas intenções, porque eu era tímida e insossa. Houve o dia que relatei o meu sentimento, com a maior força que pude, por meio de um bilhete anônimo. Alano não desconfiou das minhas intenções. Pensei que ele era burro, ou se fazia de desentendido. Amei e usei muito dos trejeitos de Feliciana. Fui ao extremo da agonia quando soube que seu pai deveria trabalhar em outra cidade, outro estado; teriam de se mudar. Aí me identifiquei. Alano ficou atônico, na saída da escola. Respondeu-me no dia seguinte, por carta, que me amava e achava, antes disso, que era alucinação de sua cabeça. Os nossos contatos seguiram por mais de um ano. Nesse meio tempo, minha mãe me perguntou se eu estava com algum problema de saúde, por estar “tão abobalhada”. Penso que sim; o amor tem dessas dádivas. As incursões nas leituras variadas aumentaram, mas nunca me esqueci do tempo de “Dias e Dias”, que me inspirou e me fez amar pela primeira vez. Fomos, eu e Alano, como Alexandre Teófilo e Gonçalves Dias. Logo o tempo nos privou dos encontros que certamente ocorreriam. A distância, cruel, abafa os corações. Contudo, sou grata, ainda, por ser virtuosa no labirinto da noite.
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Adriano Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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Referências
MIRANDA, Ana. Dias e dias: romance. – São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MIRANDA, Helder Moraes. Gonçalves Dias sob a ótica feminina. Disponível aqui. Acesso em: 13 dez. 2022.
PROCHNER, Thatiane; SOARES, Marly Catarina. Dias de Gonçalves, Dias de Miranda. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X.