BENZADEUS – ADRIANO ESPÍNDOLA SANTOS

Coluna | Anseios Crípticos


 

Nasci no interior, sem lugar definido. Fui registrada em Aracoiaba, dois anos depois. Era coro e osso, então pai me deu o nome de Esperança, para que vingasse. Além de meus pais, não vi gente até os seis anos. É modo de se dizer, mas tomei conhecimento de crianças e gente branca na casa do patrão de meu pai. Vivíamos errando, à procura de não sei o quê. Muita vez, comíamos frutas da época, colhidas do pé. Noutras, o sustento era a base de farinha e carne seca. Se pai conseguisse uma caça – que em tempo de seca é raridade –, a comilança alimentava a espera; acreditava e prometia que íamos mudar de vida. Não mudava muita coisa. E eu esmorecia junto, porque Cabriolé e Nonato, o burrinho e o cachorro, comiam os restos. Os nossos restos não eram nada. Valiam para um porco mirrado. O vexame maior era a falta d’água. Cabriolé carregava um pote grande de barro na cangalha, o qual pai enchia de água. E durava, talvez, três dias. Logo teríamos de achar uma poça para apanhar mais. Aí Cabriolé e Nonato deviam se abastecer com o máximo de reserva. A labuta dura fez com que Cabriolé adoecesse e morresse, de causa desconhecida – ou de fome. Pai pensou em desmembrar o bicho para que comêssemos; daria para um mês; mas se arrependeu da ideia e largou o coitado debaixo de um juazeiro, para não sofrer com a quentura do sol. Lutamos para existir. Andávamos em busca do tal eldorado, que só existia na cabeça de pai. Ele garantia sucesso, e a promessa tinha cara de engano. Eu quis morrer quando mãe adoeceu. Pedia a Deus que, se fosse de mãe morrer, me levasse junto. Pai dava umas ervas para mãe comer e, com isso, ela resistiu, para padecer de novo. Resistir não é se livrar da morte. Ela tinha um pé enfiado no desespero. Mãe simplesmente andava, já não falava ou rezava. A sorte é que, logo, encontramos uma casinha abandonada, onde montamos a nossa morada passageira. Pai alertava que não era o fim. Que fim ele queria? A nossa morte? Pai arranjou uns troncos secos e pedaços de palha para forrar o que seria a nossa cama. Dormi a primeira noite num lugar que podia chamar de aconchego. O amor existia, mas rarefeito, desgastado, que quase não se notava. Pai declarara que em sonho teria visto uma casa de vergonha, com móveis e até um rádio na sala. Que a mulher passava o dia na cozinha e a cuidar da casa. Que eu brincava com bonecas e brinquedos feitos de pau, que ele fazia. Era o mesmo instinto que persistia – dizem, enquanto há vida, há esperança. Na nossa cabeça, devíamos aproveitar o pouco que tínhamos, porque amanhã poderia ser pior, como sempre foi o dia seguinte. Pai decretou que ficaríamos, no máximo, uma semana, até que estivéssemos recuperados. De quê? Não havia tempo para nada; resignávamo-nos a aceitar o que viesse. Pai conseguiu tatu e preá para comermos. Nonato quedou com uns pedaços de carne e ossos para roer. Pulava satisfeito, achando, inocente, que era o começo da felicidade. Compreendi que o melhor era não saber o que poderia suceder. “Valei-me, Santa Ignorância!”. Mãe lembrava que era urgente entregar a vida à Nossa Senhora das Dores. Pai resmungava e, no fim, concordava. Pegamos nova estrada, porque o clima adensava. Pai falava de abastança, de terra verde e viçosa. Caminhávamos dia e noite. Foi a vez de Nonato cair. Era miúdo e àquela altura era quase morte. Dois dias, e o coitado feneceu. Pai chorou, desconsolado; queria ter dado uma vida melhor ao pequeno. Mãe falou que não aguentava mais. Recusou-se a caminhar. Dormimos velando o corpo de Nonato. Pela manhã, cedo, pai recolheu o morto, embalou nuns panos e jogou o pacote nos ombros; queria enterrá-lo num canto digno. Avistamos uma linda fazenda. Corri sem medo, sorrindo para o tempo. Entrei antes de pai e mãe. Dona Liduína me recebeu e perguntou se estava perdida. Apontei para os meus pais. Ela disse que tinha abrigo e comida. Ficamos. Coronel Onório afirmou que estava mesmo esperando um vaqueiro bom para cuidar do lugar. Levou-nos para um abrigo perto dos bichos, no qual havia cama, sofá e cozinha – e o radinho estava lá. Era a casa que aparecia nos meus sonhos. Conheci Ricardo e Dolores, os filhos do patrão. Em cinco minutos, já éramos melhores amigos. Aprendi a ajudar mãe nos afazeres de casa, enquanto pai trabalhava. O sorriso de mãe era fartura, bonança, como se refletisse o sol. Estudei, aprendi a ler. Frequentava a escolinha da comunidade. Tia Noélia me apresentou um livro formoso, de capa dura, que li com gosto: “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. Assustei-me com a semelhança. Como, tempos antes, um homem poderia escrever a história que vivemos? Mais tarde – bem mais tarde – percebi que estavam aí as pelejas de tantas gerações. Houve o tempo da dúvida. Agora, instruída e formada, ando nessas terras para servir; para mim, pai e mãe, benzadeus, com as nossas vidas ajustadas, é tempo de salvação. 

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Adriano Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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Referências

KIYOMURA, Leila. “Vidas Secas” denuncia o descaso social e a exploração humana. Disponível aqui. Acesso em: 04 jan. 2023. 

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 137. ed. Rio de Janeiro: Record, 2018.

REIS, Zenir Campos. Temposfuturos – Vidas secas, de Graciliano Ramos. Disponível aqui. Acesso em: 03 jan. 2023.