MISTÉRIO – VALENTINA BASCUR MOLINA

Coluna das Ausências


Mistério:
SER no mundo
alcançar a um outro
tocá-o com as palavras
abraçar o que não sei
voltar-se para a vida
entregar-se ao pouco que se sabe fazer
(escrever)
Poema que escrevi para Ariela K.

Há duas coisas que meu pai fala ao telefone nas poucas vezes que nos ligamos: “Minha filha, você tem certeza que não passa fome?”, e “Não esqueça de cuidar do seu urso”. 

Aquela frase sempre tem um efeito aterrorizante em mim. Consigo entender que para ele cuidar do urso envolve necessariamente se filiar a uma grande instituição, da qual com muito esforço, eu consegui sair. Então fico contrariada. Cuidamos do mesmo urso, só que divergimos na forma.

O efeito é aterrorizante pois antigos fantasmas me visitam gritando no meu ouvido “você está toda errada, e o sofrimento será o seu fim irremediável”. Nessas ocasiões procuro dialogar com outras pessoas, principalmente mulheres, que passaram em carne própria pela experiência da alienação do corpo por tentar se adequar a estas instituições, e que saíram, precisamente porque as consequências se tornaram irreconciliáveis.

Nesses diálogos têm surgido questões belíssimas e comovedoras. Amigas que partilham as suas jornadas dissidentes, porque bem sabemos que a tradição universal está feita sob certas medidas. No auge da crise agradeço pelo encontro, porque é o único que me permite colocar as angústias em movimento. 

Nesta interlocução tenho convocado também a minha querida mestra Gabriela Mistral, por quem sinto profundo respeito pela sua procura ética, estética, mística e/ou espiritual. O seu empenho em construir uma autonomia intelectual me inspira a cada vez que tenho acesso aos seus textos. Escritos inéditos ou pouco conhecidos têm sido publicados recentemente, muitos vinculados às suas meditações e reflexões em torno de Cristo, da vida, do mistério etc. Tomando referências não apenas desde o catolicismo, com o qual foi criada, mas também desde tradições budistas e hinduístas. Em “Toda culpa es un misterio” (2020) percebemos que Mistral nunca abandonou os Salmos de Davi ensinados na marra durante a sua infância. Ao mesmo tempo, Mistral nunca abandonou a meditação e a entrega ao silêncio durante a sua vida. É provável que eu também não abandone ambos, assim como ela. Não rejeito a tradição na qual fui criada, mas rejeito ferrenhamente a alienação à qual fui submetida. 

Há algum tempo descobri que vivo uma vida bastante religiosa. E utilizo aqui de forma deliberada a palavra religiosa, e não necessariamente espiritual, pois é a que me permite dar forma a todas aquelas qualidades que me oferecem sustento ético, que me posicionam perante ao mundo, que me permitem habitar a pele de maneira inteira, entregue e aberta a tudo que vem. 

Tenho plena consciência de que para cultivar a inteireza hoje, tive que morrer muitas vezes ontem. Conheço pouquíssima coisa deste vasto mundo, e o que tem alimentado minha vida é a proximidade com a morte, a entrega ao silêncio, o abraço humilde e generoso das minhas dores e das do mundo, e por sobretudo a alegria de compartilhar esta vida na terra com outros seres. 

Quando penso no urso citado por meu pai, lembro de Simone Weil trocando cartas com seu mestre (1942): “Tenho a necessidade essencial, e creio poder dizer, a vocação de passar entre os homens e os diferentes meios humanos confundindo-me com eles, tomando as mesmas cores, ao menos na medida que a consciência não se opõe, desaparecendo entre eles para que eles se mostrem como são sem colocar disfarces pra mim. Desejo conhecê-los a fim de amá-los como eles são. Pois se eu não os amar como são, não serão eles que eu amo, e meu amor não será verdadeiro”.

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Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.

(Imagem Julia GR)