É DOCE O SEU TEAR – ADRIANO ESPÍNDOLA SANTOS

Coluna | Anseios Crípticos


É doce e áspera a memória da infância. Vejo que continuo audacioso com as minhas estratégias de sobrevivência. Não conto as vezes em que me enfurnava nos livros para não ver a ferocidade de meu pai, nem a fragilidade mórbida de minha mãe: uma equação que nunca bateu – só eles não viam. Meu irmão – talvez por proteção da mãe natureza – era muito miúdo, e não tomava parte do absurdo; eu que chorava e dava consolo a quem deveria me consolar. Friso: não jogo aqui palavras de ingratidão, a vida é difícil, eu sei. Meus pais fizeram o que lhes foi possível, e eu fiz o que era necessário para escapar. Mas, ainda assim, há a memória doce, e creio que o doce se sobressaiu sobre o áspero, felizmente. Relato isso para dizer, em poucas linhas, que lia com profundo gosto Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles e, principalmente, Marina Colasanti. Como é doce o seu tear. Lembro-me, como se fosse ontem, a leitura que fizemos, os alunos, na aula de português da professora Roberta. O texto: “A moça tecelã”. Era muito tímido, por isso me sentava atrás, para não ser notado. Nesse dia, imagino que a professora me percebeu justamente pelo contrário da exposição, porque estava cabisbaixo, introspectivo. Chamou-me para ser o primeiro. Era somente um parágrafo, mas tive a impressão de que iria empreender uma aventura bíblica, de tão graúdo. Medo e impressão. Poderia errar e ser taxado de burro – era o tratamento da época em que não sabíamos o que era bullying, para o qual não havia remédio. Ao término, a professora graciosa me agradeceu; seguiram-se as leituras dos colegas. Foi a primeira vez em que me senti inteiramente incluído na história. Pensei que poderia ser, como a moça tecelã, senhor de meus sonhos e desejos, que conseguiria tecer o meu mundo. “Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila”. À maneira da moça, criaria barreiras para os abusos. Mas, lógico, temeroso pelo excesso do que se quer, deveria querer o bastante para ser feliz, e o que eu tinha às mãos, sob meu controle, era a leitura, meu refúgio. As obras de tantas escritoras e escritores pareciam coerentes aos meus projetos de bem-viver. Foram sendo tecidas tramas magníficas na minha mente já abundante. Se meu pai chegasse bêbado e desordeiro, trancava-me no quarto ou no banheiro para não ouvir as cismas dos adultos. Se meu irmão levasse o meu brinquedo predileto, não me importava; o que eu mais gostava estava ali, o livro, que era por mim escondido ou camuflado, na maioria das vezes. Se minha mãe pedisse colo, estaria aliviado para lhe atender. E aprendi, com o lampejo dos fios de tecer, que para tudo há uma saída, um modo adequado para extravasar as tensões. A leitura, minha companheira presente, sempre será o principal artifício de existir.

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Adriano Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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Referências

CARTA CAPITAL. Vale a pena olhar de novo: sobre a obra Alice, em Sevilha. Disponível aqui. Acesso em: 13 fev. 2023.

COLASANTI, Marina. A moça tecelã. Disponível aqui. Acesso em: 13 fev. 2023.

COLASANTI, Marina. Site da autora. Disponível aqui. Acesso em: 13 fev. 2023. 

MENDES, Milena. As 10 poesias mais lindas de Marina Colasanti. Disponível aqui. Acesso em: 13 fev. 2023.