“Entre o eu, o mundo e o amor há entrelinhas tão miúdas, que só o tempo é capaz de ler. Escrever é uma tentativa de contornar o tempo, fingir que somos capazes de compreender os desenhos que ele faz em nós”.
Maria Giulia Pinheiro
Eu escrevi um livro sobre a morte. Mas não o escrevi sozinha. Tomei emprestada a história da primeira mulher que vi morrer: minha tia.
São pequenos poemas sobre cenas amargas que “entre os dentes seguram a primavera”, como diriam os Secos e Molhados.
Este livro nasceu graças à dedicação de muitas mãos. O Núcleo de Dramaturgia Feminista acompanhou todas as versões, desde que era um rascunho no Word, até virar projeto gráfico com colagens incríveis feitas pelo Murillo García.
Nessa oportunidade, eu só entreguei o texto e confiei em que meu amigo iria ter a sensibilidade suficiente para ‘ler’ as imagens ali colocadas. E assim aconteceu.
Foi no Núcleo de Dramaturgia Feminista que me entendi poeta, apesar de escrever (e até pensar) em verso desde que ingressei no sistema escolar aos cinco ou seis anos de idade. Cresci vendo meu pai devorando livros, e minha mãe registrando as suas orações e meditações em diários, assim como a sua mãe também costumava fazer. Sempre falo para minha mãe que hoje estou honrando os meus sonhos de criança. Uma criança que sempre sonhou com escrever e ser lida.
A escrita faz parte do meu refúgio, mas o desafio maior da poesia autoral tem sido precisamente colocar a cara à tapa. Ninguém gosta de poesia, ninguém tem tempo de ler, ninguém tem sequer recursos para comprar livros. Sabemos bem como é. Colocar a poesia no mundo é também lidar com a sensação de fracasso quando os nossos projetos, que saíram das nossas tripas, não são rentáveis para o mercado. A questão é que a gente não escreve para essa entidade que supostamente se autorregula (risos).
Escrevemos porque queremos tocar o outro com as palavras.
Ou talvez, cada um tenha seus motivos particulares para escrever, e não me interessa enfiar meus dedos nos critérios pessoais de ninguém.
Nesse processo de (voltar a) ser poeta, tive uma companheira, maestra e amiga que tomou a mão de muitas poetas perdidas por aí e nos levou pela pulsão erótica da criatividade. Maria Giulia Pinheiro, poeta, dramaturga e a escritora que assina o prólogo do meu livro. A nossa relação maestra-discípula se nutre pela admiração e amor mútuos. Fragilidades compartilhadas, feridas abertas e à mostra. Isso tudo durante os anos mais sombrios que já passei. Juntas.
Para este livro nascer, muitas mãos cuidaram de mim, porque me ajudaram a permanecer viva e respirando. Gabriela Monteiro, mulher libertária, assina a orelha do meu livro. Lembro quando anos atrás dona Malu, sua mãe, fez um bolo para comemorar o meu aniversário de 27 anos no dia que defendi a minha dissertação de mestrado, e no dia em que, tristemente, me sentia profundamente seca por dentro.
Aquela dissertação, que hoje é um belo livro publicado (olha eu, falando naturalmente bem do meu próprio trabalho!), só foi possível graças às mãos de Mari, (amiga que o Dharma colocou no meu caminho) que ofereceu ternamente um espaço na sua casa para que eu, no meio do meu inferno pessoal, pudesse me refugiar, e por fim, concluir a minha escrita.
P., L., A., N., R., P., são mulheres que com as próprias mãos me ajudaram a tecer caminhos de cuidado. Fizeram uma ponte para que eu pudesse atravessar as tempestades, enfrentar a fúria do tempo, e a angústia da morte.
Essas mãos estiveram aí, comigo. Juntas.
E o cuidado de todas elas possibilitou que eu esteja hoje, pulsando de vida, prestes a ver meu livro novo nascer.
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Nota da editora: O livro CADERNO DE EXERCÍCIOS DE MEMÓRIA (Philos), contém poemas e prosas de Valentina Bascur, com colagens de Murillo Garcia e prefácio de Maria Giulia Pinheiro. O livro está em pré-venda no site da Revista Philos: acesse aqui.
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Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.
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Imagem: Murillo Garcia.