PARA ME ENGOLIR – ADRIANO ESPÍNDOLA SANTOS

Coluna | Anseios Crípticos


Há de se ter um pouco de deboche na vida. Sim, nesse ato de viver: uma arte. Logo nos primeiros meses, papai me disse que eu aprontei uma boa: à noite, como era de costume, eu acordava aos berros para mamar, só que, num belo dia – nem sei se tão belo assim –, papai notou a minha mudez. Como ele tinha insônia, ficou intrigado com a situação e resolveu conferir. Ao chegar ao quarto, notou que o berço estava vazio. Gritou por mãezinha, que veio correndo, com as mãos na cabeça, alardeando que teriam levado o seu filhinho – até consigo perceber a sua voz esganiçada e tragicômica. Cessaram-se as buscas, ele teve de tomar conta de mamãe, desesperada, em ares de morrer, agora com as mãos no coração. Papai se revezava nos cuidados e nos olhares graúdos pelo quarto. Notou um rebuliço no colchão; levantou-o e viu o menino sorridente, gargalhando, como se tivesse pregado uma peça. Mamãe voltou a sorrir, abafando a perturbação. Papai disse que só não me deu uma porque eu era muito novo – mas não era tão inocente para fazer as minhas traquinagens. Comecei cedo a me equilibrar na corda bamba – falo porque, em muitos momentos, fui tido como doido ou inconsequente. Recebi cartas, laudas e laudas de leitores anônimos, declarando que eu era um mago farsante ou um bruxo do inconsciente, pois eu teria o miraculoso poder de “encantar” – ainda que, pensava, imbuído de bons instintos. Nunca duvidei do meu poder: a prosa para disfarces, a prosa para sobreviver à vida. Morgana, minha dama, elegeu-me por isso; relatou que fui bastante caricato, empático e sortudo – concordo com a última afirmação. Quem me vê fora das linhas, imagina que sou um tremendo bufão, que tira sarro de tudo; pois eu vos digo: sou um enganador crônico. Não acredite em nada que declaro, isso me sai sem ao menos desejá-lo. Se vejo uma notícia absurda e deveras grave, mesmo dos fatos corriqueiros, tento colocar um pouco de tempero, para que possamos deglutir, sem arranhões. A crítica gera crítica. Se a faço, enxerido que seja, promovo uma espécie de catarse nos leitores – pelo menos, pretendo. A notícia pode vir ensebada de vísceras, mas a destrincho para provocar a curiosidade e o saber. Bem, não sou tido a diários e afins. Morgana pede, encarecidamente, que me dedique a armazenar as minhas memórias pessoais e as memórias da nossa vida a dois. Não acho que tenha algo tão relevante para mostrar; não sou vaidoso; nem sou metido a preciosismos. Minha vida pouco interessa, é ínfima diante do que deixei nas peças espalhadas por aí. Isso cativa mais, decerto – espero. Um amigo me perguntou outro dia se eu sabia quantas crônicas havia escrito em vida – tautologia braba, mas não o cortei; só se pode escrever em vida, não é? “Bem, meu caro, o que escrevi já não sei, ganhou vida própria e incinera neurônios por pura diversão”. 

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Adriano Espíndola Santos (Instagram | Facebook) é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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Referências

AIDAR, Laura. 8 crônicas engraçadas de Luis Fernando Verissimo comentadas. Disponível aqui. Acesso em: 16 mar. 2023.

LIMOEIRO, Rosiney Fernandes. A crônica e conto de Luis Fernando Verissimo na formação do leitor. Disponível aqui. Acesso em: 16 mar. 2023.

 VERÍSSIMO, Luis Fernando. Conto brasileiro. Disponível aqui. Acesso em: 16 mar. 2023.

VERÍSSIMO, Luis Fernando. A bola. Disponível aqui. Acesso em: 15 mar. 2023.

@ Crédito da foto de Bruno Veiga