Amanda,
As pessoas da Zona Sul parecem ser todas iguais. Te escrevo nesse final de semana esquisito em que me sinto meio desajustada. Aqui o povo pretende ser diferentão, mas não é: frequentam os mesmos lugares, usam as mesmas roupas. Me pergunto se tenho algo em comum com todos eles, mais do que pagar absurdos pelos metros quadrados que nos garantem um mínimo de estrutura e segurança nessa cidade tão desigual.
Talvez procuramos as mesmas coisas: poder voltar do trabalho em paz, ligar a TV no fim do dia e assistir o jornal bebendo uma gelada, descer o lixo e cumprimentar o vizinho.
Tudo que se fala sobre esta cidade é verdade. Que é maravilhosa, que é perigosa, cabulosa, encantadora. Corre uma pulsão erótica pelas suas veias. Você acorda, olha pela janela e tem essa natureza exuberante que irrompe na paisagem. Não tem como ser indiferente aos seus morros, árvores, praias e cachoeiras.
Minha família me pergunta pelo clima, e eu digo que há sempre uma quentura pegajosa no ambiente. Cem por cento de umidade, sem chance de sequer chegar a sentir frio alguma vez. Um sonho para quem nasceu na cidade onde o inverno dura dez meses, né?
Já são uns bons anos morando nesse Brasil, e ainda não sei onde pertenço. A mesmice da Zona Sul me faz sentir alheia, distante. Estrangeira mesmo. Se sou mais feliz aqui, não sei. Certamente sou mais eu. Aqui tem vitamina D para jogar pro alto. Não tem dia que não acorde com disposição para engolir o mundo, minha amiga. E queria enviar um pouco dessa energia num pacotinho para você.
Lembra dos nossos dias na sua casa? Com direito a café da manhã demorado no meio do mato. Uma vida bandida que consistia em descer na praia, tomar banho de mar ou de cachoeira. Ler um livro em voz alta para ninguém perder a história. Depois voltar para casa e bater um pratão com muita farinha do Pará. Às vezes me pego rindo sozinha quando lembro de você gritando “você acha que nessa casa alguém tem pena de homem? ”. Foram os dias mais felizes da minha vida e por um motivo muito simples: porque sinto que é do seu lado onde eu pertenço.
A sua companhia me faz falta demais. Parece que pertencimento tem a ver com cuidado, segurança, abraço e, sobretudo, risada.
Penso em nós duas bem mais jovens, saindo do interior e deixando tanta coisa para trás. Parece que a gente tem que matar todos os dias aquela moça evangélica bem-comportada, que era o sonho dos pais, que ia casar na igreja e chegar virgem ao matrimônio. E eu sei que persistimos porque não queremos voltar para aquele lugar, ainda que às vezes pareça duro e solitário.
Queria chegar em casa e que alguém tivesse a minha janta pronta, mas o custo é muito alto. É como vender a nossa alma. Delegar ao outro o próprio cuidado é muito, mas muito perigoso.
O que nos espera no futuro? Eu me vejo com você, porque foi com você que aprendi as coisas mais especiais sobre o amor. E não me importa se moramos em estados diferentes, ou em países diferentes. Eu sou teimosa, e você sabe. Sou capaz de te buscar pelos cabelos se for necessário. Eu te amo de maneira feroz, minha amiga. E não desisto.
Beijos,
Valen.
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Valentina Bascur Molina é pesquisadora, poeta, escritora e tradutora. Mestre em Estudos Feministas pela UFBA. Nasceu e cresceu em Temuco, território de Wallmapu, Chile. Reside no Brasil há nove anos. Autora de “Kümedungun: trajetórias de vida e a escrita de si de mulheres poetas Mapuche”, publicado pela Editora Urutau, selo Margem da Palavra, em 2021. Integra o Núcleo Feminista de Dramaturgia, espaço em que desenvolve projetos de escrita e pesquisa coletiva com outras autoras, sob orientação de Maria Giulia Pinheiro.
Imagem @Melinda Josie