O QUE SE SABE SOBRE O QUE SE PRECISA SABER PARA SER UM POETA

coluna palavra : alucinógeno

por fábio pessanha

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o poeta é um troço que precisa ser desinventado a todo instante. ou se morre por engasgo de arroto ou se deita com defunto afoito. há uma trama imagética que articula os meios comuns de se estar vivo com os pés na terra. há uma veia inflamada desde o alvoroço dos cabelos até a planta dos pés.

o poeta, a gente propõe: é uma habitação, um lugar para lugares. se houver fórmula cabal para esse inventário, será uma desilusão premeditada. mas o que se sabe é que muitos são os indícios para o risco de se permanecer torto na seguinte constatação narcísica: o poeta é um lugar que transita por resquícios.

o querer saber das coisas é uma tentação. mais que um ideário longitudinal, há um fascínio por se desejar agarrar aquilo que não cabe nas mãos. o excessivo é um transbordamento erótico, haja vista a heterogeneidade das bocas na vontade de engolir mais do que alcançam. para além de uma pilhagem conceitual, há poemas que se excedem quando saem daquela linha divisória que demarca um assim se faz e aqui se paga. aqui muito se faz e pouco se paga, diga-se de passagem. pedimos fiado na maior cara de pau e nos ajustamos com aquilo que não requer nota promissória. então, numas provocações muito malcriadas, como aquele tapa safado na cara, aí embaixo são disparados alguns delírios a respeito do que a gente deveria saber sobre ser poeta:

é preciso conhecer “tudo que puder sobre animais assim como pessoas”. é necessário ter no corpo a sabedoria burlesca das dores, também as cores do crepúsculo nascente entre os nervos do chão. todos os “nomes de árvores e de flores e de ervas daninhas. / nomes de estrelas e o movimento dos planetas / e da lua” são também preciosidades necessárias; as magias tradicionais entre ilusórios sonhos e demônios, tudo importante demais para essa querência, até que se chegue ao orgástico ponto de se “beijar o cu do diabo e comer merda / foder seu calejado pau farpado; / foder a bruxa, / e os anjos celestiais” porque o cu não se restringe a um simples preceito anal. seria mais, quem sabe, um círculo envoltório das impossibilidades possíveis ou talvez se refira ao armistício dos dias, quando são lançados precipícios ao ventre dos vícios.

merda é mais: transita entre o produto pós-metabólico e o antesmente do aplauso.

poeta é este veio ontológico que habita o antes e depois das palmas porque tem conluio com o silêncio. nesse intento de se saber mais sobre o que mais se precisa saber para ser poeta, é necessário sentir a glória do amor após o sabor da palavra, que na verdade não é nem após e nem antes, é um durante que se prolonga nas gentes, que a gente é um ser sem esquadros, que ama “esposas       maridos      e amigos” na beleza incondicional dos fatos.

a infância, esse durante de nossas vidas que muito se perde aos poucos, é fundamental: “jogos de criança, quadrinhos, chiclete”, pois saber rir da própria cara, aprender a cair dentro do tombo, apontar o ridículo no outro – por ser o outro uma extensão ambígua do próprio que a gente é – quer dizer [e diz] a sabedoria fundamental para se aguentar, ainda e conquanto, “a bizarrice da televisão e dos anúncios”. pouco se diz nesse amontoado de falas, mas são necessárias, muito necessárias como matéria jugular na sanguínea verve das imagens. e dói. é árdua a tarefa de se prolongarem as sentenças comuns das horas porque se conserva o invólucro inconsciente das zonas afetadas pela mesmice do depois do amanhã, ainda mais quando só se tem o ontem.

mas é necessário insistir, é necessário “trabalhar, longas e áridas horas de trabalho maçante / engolido e aceito / e tolerado e finalmente amado” para exercer o labor absurdo dos abraços, quando dos punhos, passando pelo dorso, umbigo e espasmos, mostram-se escassos todo modo útil de se apresentar compassos dessa música que se encarna no avesso rudimentar das unhas. finalmente, ao ser premiado pela inventiva das palhoças castas de perjúrio, elevam-se os traçados sacanas do rebolado e se chega, ou melhor, o poeta se apossa ainda mais do corpo, onde “exaustão, / fome, descanso” se acotovelam numas núpcias bem gozadas, em que se desguarnecem fronteiras e se desfaz a mordaça quântica do berro.

p.s.1: leitura-ensaio do poema “o que você deveria saber para ser um poeta”, de gary snyder, publicado em Re-habitar: ensaios e poemas, editado pela azougue editorial em 2005. snyder é um poeta norte-americano que embora tenha se notabilizado no brasil por sua expressão beat, vai além ao perceber a conexão entre tudo que presta e que não presta – as coisas relegadas ao chão, como diria manoel de barros – e tem em sua poética a regência pela filosofia zen budista em tensão com a percepção analítica da antropologia, biologia e geologia.

p.s.2: o poema “o que você deveria saber para ser um poeta”, do gary snyder, aí embaixo:

tudo que puder sobre animais assim como pessoas.
nomes de árvores e de flores e de ervas daninhas.
nomes de estrelas e os movimentos de planetas
                                                    e da lua.

seus próprios seis sentidos, com uma mente atenta e elegante.

pelo menos um tipo de magia tradicional:
Adivinhação, astrologia, o livro das mutações, o tarô;

sonhos.
os demônios ilusórios e os reluzentes deuses ilusórios;

beijar o cu do diabo e comer merda,
foder seu calejado pau farpado;
foder a bruxa e os anjos celestiais
                                                            e as virgens preciosas e perfumadas –

& então amar o humano: esposas         maridos         e amigos.

jogos de criança, quadrinhos, chiclete,
a bizarrice da televisão e dos anúncios.

trabalhar, longas e áridas horas de trabalho maçante
                                            engolido e aceito
e tolerado e finalmente amado.         exaustão,
                                            fome, descanso.