coluna palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
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Inconsequência
é abraçar o que não se alcança O exagero indiscernível em se apalpar a esperança do que das mãos se rui O nada está diretamente ligado à paixão e incorpora a afeição de tudo que é estranho que solapa o itinerário de um rim ao outro e sente o
afetar
quando ainda na pele habita o largo horizonte do mundo Deixar-se fertilizar pela diferença de ser em si o que não se conhece do que se pensa saber é uma glória A presença de um dizer se apresenta em seu próprio enunciado A fala de uma palavra apaixonada Da palavra que ama seus
desvios
e por esse avio se convoca o verbo a se inventar Enche a boca do poeta de encantos O poeta mastiga as imagens e cospe a promíscua relação entre vento voz luxúria afago afeto corpo instante encalço entorno fuga fúria errância ação imaginação É uma sabedoria por eflúvios um sobressalto na língua que lambe a palavra em ruínas Saber é
sabor
O saber da paixão O sabor do saber porque toda experimentação é uma deglutição que abre caminhos e que alarga o âmbito do sensorial para o memorial Tudo que nos afeta se torna aquilo que somos na medida em que nos damos ao exercício diário de ser no mundo um ínfimo instante O
páthos
o patológico o lógico que tem seu berço no lógos na linguagem que corrompe o conceito de mera comunicabilidade – páthos é paixão – o patológico a doença da palavra sem rumo quando doença quando o patológico quando a afecção quando tudo que se diz no fundo se diz por ser palavra mais ainda por ser linguagem A doença é o toque O absurdo que faltava para o surdo perder a mão Então palavra – a
palavra –
é o centro da paixão Pela palavra o mundo se move No gesto de corpo em ser no mundo o mundo do ser a palavra gira jaz é pombajira é improviso jazz A música do silêncio ouvida em alto e bom som quando as pernas se bambeiam pela beira quando o corpo roda em busca do seu eixo quando o centro é o núcleo a concentração entre palavra e paixão O
poeta
não deixa a palavra na mão Apalpa a lábia no traquejo da linguagem na doença do poema Da palavra Quando ama e se descama porque “palavras têm que adoecer de mim para que se tornem mais saudáveis” e adoecem e chamam pela porta dos fundos quem for desencontrado dos mundos É no poeta que a paixão se descobre é no poeta que o largo vazio da palavra reúne os beiços respinga o beijo na camisa alinhada com tudo que der ideograma A
roupa
da palavra é a invenção mais gramática que qualquer pragmática possa oferecer Todo uso que se dê todo o flagelo que se inverta no elo longínquo do grelo veste de vestígios a pouca fala da lógica É patológica a dimensão em que dicionários se tornam referência definitiva de quereres quando são na verdade a fonte de longos saberes “Cada palavra é, segundo sua essência, um poema, só em sua gênese. No dia em que completar cem anos, publicarei um livro, meu romance mais importante: um
dicionário”
quando se enxerga que a vestimenta do verbo promove furdunço na boca do poeta que só quer saber de ser jagunço na própria enseada do rio que faz curva no fundo de sua casa aí a palavra está em pleno amor com a paixão quando ambas são o desejo mais precioso da fala contida nos pulmões retesados pelo suplício da língua em se deitar mais uma vez na cama da linguagem e gozar o silêncio solene do páthos.
P.S. um enredo que se diz poema pode ser uma trama, um corte no esquema sintático de se inventar um modo de frasear, de se compor versos numa métrica ou de se corromper com qualquer medida, com qualquer desejo de conter um poema num formato poemático. um ensaio é em si a potência poética do pensamento, que se livra dos certames referentes aos padrões formais de um texto em prosa ou verso. desde antes de Baudelaire não há mais prosa ou verso, desde antes de Mallarmé a crise está instaurada (o que eles fizeram foi consagrar o barulho nas artimanhas versejantes ao borrar os limites entre prosa e poesia no sentido material da coisa). seja com poetas prosadores ou com prosadores poemantes – porque o vice é versa e vice-versa –, o que importa é a tensão em que o corte corta, enxerta, injeta não apenas uma palavra, mas todo um acontecimento verbal ao elevar esse instante que se instaura ao preceito extático da realidade. por princípio extático – de ÊXTASE – entendemos isso que é vivo no corpo da palavra e pulsa e nos move e nos co-move em consonância com o potente silêncio da linguagem. ah, sim, este post scriptum não acabou. é preciso dizer que aqui estão presentes o adoecer palavral de Manoel Barros, com um verso do poema “Retrato de artista quando coisa”, do livro homônimo, reunido em Poesia completa (Leya, 2010); e um trecho da entrevista que Guimarães Rosa concedeu a Günter Lorenz durante o Congresso de Escritores Latino-Americanos, em 1965, publicado em Diálogo com a América Latina (Editora Pedagógica Universitária, 1973). Agora sim, acabou-se, mas é um acabar que continua… e continua… e continua…
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Ilustração: Alessandra Genualdo