|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
0. corpo:unidade:presença:voz:palavra
minha voz fala hilda hilst. fala de dentro do nervo das palavras. aqui não há recantos. aqui todo lado é santo. aqui todo santo é corpo. a voz feita de carne pesa o dorso na sua sombra. meu verbo embora queira não é conjugado. mas digo: a lonjura com que me detive era em mim os meus melhores delírios: nenhuma palavra se restringe à própria conjugação: elas voam no voo que intenciona infligir um decênio na palma das mãos. o poema: meu exorcismo particular. pende para o lado inefável de se querer ouvidos para uma escuta que é mais que corpo. é corpo e ainda mais corpo. quanto mais pele mais cheiro terão as palavras percebidas na canção do verbo. essa carne oral desviada por imagens. esse tom de suores traçando rotas por sonhados declives.
três são os pilares do que me leva ao corpo do poema: morte. sagrado. amor. três maneiras de se viver o silêncio. três modos de se compor uma unidade. a trindade santíssima do dizer que me cala enquanto digo. e digo:
I. morte
como tudo que me falta e me excede. do nome que te confesso falha a forma com que me fazes presente. a morada no corpo tem de passagem o largo passo de vidas em minha vida. uma transmutação pele-agoral: a morte me é no meu nome. me exerce nas minhas dúvidas. é certeza nos meus ombros quando sobrecarrega a leveza de seu dizer em tudo que digo e exerço no calar.
Pertencente te carrego:
Dorso mutante, morte.
Há milênios te sei
E nunca te conheço.
Nós, consortes do tempo
Amada morte
Beijo-te o flanco
Os dentes
Caminho candente a tua sorte
A minha. Te cavalgo. Tento.
te carrego em todas as partes do meu nome. te carrego no meu corpo. na minha palavra. na minha palavra que te beija em tudo que me são bocas. morte. a tentativa de todas as investidas dos meus lábios. te ergo o flanco no meu peito aberto e te vivo em todas as despedidas. sagrado é o teu desejo de me exercer em nossos dias.
II. sagrado
como tudo que me falta e me excede eu quero falar de deus: A minha literatura fala basicamente desse inefável, o tempo todo. Mesmo na pornografia, eu insisto nisso. Posso blasfemar muito, mas o meu negócio é o sagrado. É Deus mesmo, meu negócio é com Deus. a sina de seguir quem me segue. de viver quem me vive. este ser sem identidade que me abusa e me torna presente. que vejo no espelho que me olha. que me diz ausente na saliva que me lambuza. deus: menino quase sempre assassino que me participa quando brinco. de poesia:
É rígido e mata
Com seu corpo-estaca.
Ama mas crucifica.
O texto é sangue
E hidromel.
É sedoso e tem garra
E lambe teu esforço
Mastiga teu gozo
Se tens sede, é fel.
Tem tríplices caninos.
Te trespassa o rosto
E chora menino
Enquanto agonizas.
É pai, filho e passarinho.
Ama. Pode ser fino
Como um inglês.
É genuíno. Piedoso.
Quase sempre assassino.
É Deus.
o sagrado se espalha no que me diz. tamanha é a voz que me eleva para o interior de mim e me carrega infinito adentro da palavra que me descobre. deus é o que aparece e comparece na procura diária por mais um poema. a experiência legítima de um corpo que se eterniza no que transborda em versos. em palavras. em imagens. deus é uma imagem. deus é o consorte de todas as viagens. o sagrado se concentra nesse sentido numinoso de se dizer à deriva dos preceitos cristãos. a anomalia dos meus versos consagra a distopia ocidental de um conceito divino instituído por entidades formalmente religiosas. por isso é necessário dizer e digo: deus não é. nunca foi. mas sempre será.
III. amor
como tudo que me falta e me excede com amor digo mais esta prece. de todo meu corpo o que prometo são vertigens. não sei onde terei paragem. não sei tampouco onde os sulcos das minhas pegadas farão rascunho nos descaminhos do chão. mas amo. amo inteiramente nesse incompleto amor. amo dentro. amo fora. prometo que me entregarei de corpo nu a quem se puser em mim quando das minhas palavras se fizer o instante do nosso encontro. seus olhos serão os meus. seus dedos no meu gozo tocarão os segredos de cada úmida voracidade. te prometo. e você
Promete-me que ficarás
Até que a madrugada te surpreenda.
Ainda que não seja de abril
Esta noite que descer
Ainda que não haja estrela e esperança
Neste amor que amanhece.
e amanhece desse desejo antigo e diáfano e sem estrelas. o que fica hoje é o som dos corpos se batendo. há muito suor sagrado nesse embate. um querendo ser mais dentro do que o outro durante a agonia de pertencerem ao mesmo espaço. Como se fosses morrer colado à minha boca. / Como se fosse nascer / E tu fosses o dia magnânimo / Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.
o amor surpreende a silhueta das mãos em desenhos ainda imprevistos para os olhos. o amor mora nos restos dos dias. naquela parte ausente em cada pôr do sol. esse desejo incompleto. esse amor incompleto. o quase que toma meu estômago e me enche de fome. a carne agora tem cheiro de homens e mulheres e se dilui na língua de quem tem sede.
hilda:voz:eus
como tudo que me falta e me excede. a morte. o sagrado. o amor. mais ainda: o que ficou latente na voz. o que não foi escrito. o que nem ainda chegou a nascer. o silêncio é parte de tudo que ainda falta. e ainda falta muito. essa voz que diz. esse verso que distingue. esse poema que incorpora. eu sou hilda hilst. eu sou a voz que fala junto com as palavras. a voz que arquiteta ouvidos para a silhueta dos versos. eu faço amor com o nada. e amo cada vez mais os meus desvios. seus desvios. nossos encontros. poesia: A poesia tem a ver com tudo o que não entendo. Tem a ver com a solenidade diante do mundo. Algo sagrado e importante que eu não queria perder, e ela sempre vem quando estou prestes a perder isso. e nesse encontro nos perdemos: poesia.
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P.S. os poemas aqui presentes foram colhidos da antologia Da poesia, publicado pela companhia das letras em 2017. serviram ainda de apoio ao nosso pequeno ensaio-delírio o posfácio de victor heringer e a entrevista de h.h. – “Hilda Hilst: o excesso em dois registros” –, concedida a vilma arêas e berta waldman, que também integram a citada obra. então, como tudo que nos falta e nos excede, sejamos aqui voz de hilda hilst. de dentro dos poemas, de algumas entrevistas e estudos, se ouve a voz de hilda. insiste a voz do interlocutor em se dizer, esta que é também a voz de hilda. a voz silenciosa da leitura, da escuta, da escrita. aqui sou hilda hilst. aqui, você é hilda hilst. aqui, a poesia é tudo que a gente não entende. e dou graças a isso.