coluna palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
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é inconcebível o ato libertário de se lançar palavras às frases.
é inexplicável a ação de se enterrar sementes e esperar o futuro de uma árvore.
somos feitos desses ritos e nos desmanchamos com eles.
o improviso do corpo em se deixar cair na imensidão da pele,
os buracos,
os poros,
o cu,
lugares sagrados onde imagens se desfazem e se inventam, onde o vento passa e faz abrigo, onde o alicerce do elogio se derrama junto com a força de se ruir caminhos.
a vontade de colocar para dentro tudo que é fora dos olhos, todos os lugares onde as mãos não alcançam é uma necessidade; a vontade de se construir degraus num teto sem fundos, de levantar muros para poder enxergar melhor o que ficou proibido do outro lado do mundo é uma impecabilidade.
a semântica do inverno significa ninho cheio de passarinhos, quando todas as bocas edificam mordidas no dorso da solidão. o poema que se ergue não quer dizer exatamente o que está escrito. é preciso muita cegueira para se incorporar um verso. só alguém que nunca morreu diz que entendeu um poema.
a sala está cheia de mentiras e damos graças a todos que enterram a cara na gênese da falsidade.
quero
uma manhã sem muitos flertes caindo
ao meu lado, quero
engolir o corpo inteiro daquela voz que não
cansa de sussurrar verdades em meus ouvidos.
eu não escuto o que tem cheiro de pureza,
mas tenho certeza:
“poetas nomeiam o sagrado”.
poetas deixam realidades brotarem nos nomes que dizem, porque as coisas se consagram,
antes,
dentro da escuta.
ganham o corpo da voz.
quando chegam aos ouvidos, quando atingem as bocas, são imagens verbais do sagrado, que nada tem a ver com joelhos ao chão ou olhos ao céu.
o sagrado a gente inventa agora: diz a reunião do que não é possível conter no gesto, talvez o exercício de se devorar o obscuro, de se sentar junto às mãos tomadas pelo desejo de incorporar a obscenidade oculta dos lábios. viver um poema significa arriscar-se num caminho sem volta. os pés não redizem as pegadas que cometeram, o corpo não goza duas vezes do mesmo jeito, as mãos não se aquecem nunca no mesmo apego.
mas poetas se arriscam. poetas sempre se arriscam mais, por não conhecerem a lógica dos gestos comedidos. poetas provam o gosto do caos e desorganizam tratados desde antes de habitarem o próprio abrigo,
“pertencem à índole dos que arriscam mais, caminham no rasto do sagrado, pois experienciam a incúria como tal”.
a exclusividade do risco aqui não quer dizer monopólio. arriscar mais, por aí a gente entende o abrir-se para a fertilidade das imagens, perder o medo de falar com a voz de todos os outros dentro dessa voz que diz quando a gente (se) fala.
o singular é um plural travestido de muitos singulares. o singular são muitos. poetas realmente se arriscam mais.
qualquer medida que exponha uma diferença quer dizer a condução (-ferença)1 para o múltiplo (di-) num mesmo, quando “mesmo” não se confunde com o igual, mas pertence ao “diverso que se dá, pela diferença, desde uma reunião integradora”. essa reunião integradora é também o sagrado se dizendo no poeta, porque poeta é sempre junto, nunca igual. não é aquelx que se posta diante do espelho, não se resume a um sujeito, tampouco ao jeito acertado de dar com a cara em martelos, a fim de quebrar conceitos,
que mete o peito onde não há fundamento para costelas. poetas são os que arriscam mais, correm o risco de nascer de novo a cada verso, de se perder na voz de quem xs lê, de quem – tal como elxs – assimila os poemas tendo febre, tendo fome, quando cada palavra se compõe de
suor,
pele,
sintomas
e
sintagmas
imprevistos a qualquer lógica coercitiva, a qualquer manual que chama poeta de pessoa, que postula que ele é assim, desse jeito e coisa e tal.
poetas não têm casa, não têm cara; poetas são a casa, são as caras, costas, o lugar, o corpo inteiro das palavras.
P.S.: estava com a passagem “poetas nomeiam o sagrado” na cabeça, que é um trecho do ensaio “Que é metafísica?”, de Martin Heidegger, e que se encontra no livro homônimo, editado na coleção Os Pensadores (Nova Cultural, 1999). então resolvi pensar o que é isso que se chama poeta (de novo, pra variar… rsrs…), questão que cada vez mais me chama pra conversar, tanto que a desenvolvo em minha tese de doutorado e que sempre me desencadeia em escritos. aqui, a ideia se ampliou às voltas com outros dois ensaios do Heidegger: “Para quê poetas?”, que integra o livro Caminhos de Floresta (Fundação Calouste Gulbenkian, 2012) e “… poeticamente o homem habita…”, presente em Ensaios e conferências (Vozes, 2012). no mais, é puro delírio mesmo. não acreditem em mim.
1 encontramos na palavra “diferença” o prefixo di-, que exprime ambiguidade, e o verbo latino fero, que significa “conduzir”. então, se olharmos com mais cuidado, veremos que “diferença” quer dizer aquilo que conduz para o “entre”, para a ambiguidade de ser.