VOZES DE UM POEMA PROFUNDAMENTE POLÍTICO – FÁBIO PESSANHA

|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha

tomar posse como trazer para dentro. embeber-se. embebedar-se do próprio corpo. fazer da palavra erguida um monumento que se atreve a romper a maldade das interdições. tomar posse de um poema como fazer dele uma habitação. deixar-se imerso no antes e depois do verso como um ato político, profundamente político.

político diz um todo. uma copertença com a pólis que somos. então, pólis não tem apenas a ver com a cidadania circunscrita a uma territorialidade, principalmente quando ideológica. isso ainda é pouco, a pólis é mais. em sentido amplo, poético, pode-se pensar ser o homem além de humanitarismos, ou um poema que se escreve na tensão dos seus versos, que estão aquém e além de comprovações palatáveis. quem sabe, dentro de um contexto poético-ontológico, pólis-homem-poema estaria no cerne da dinâmica das realizações do real.

um poema político como a voz toante de nossos braços, como o gesto lívido de uma palavra que resguarda em seu corpo fônico todos os silêncios do mundo. o mundo não como o conjunto do que nos chega aos olhos, e sim como o lugar do nervo, o acervo incandescente do corpo que se lança ao próprio abismo. a palavra, o político, o gesto crítico em se amar nos amores que nos amam. uma posição política como um ato amoroso, que não tem a ver com o “cacarejo político”, com “temas públicos”. uma posição política como um poema que se faz político, mas que “não é um poema sobre a política”.

tem a ver com a dor das vezes de nos encontrarmos onde não estamos, tem a ver com o corpo nascido do verbo, da incontável maneira de se dizer no que não existe, de existir no que não se disse.

um poema político, profundamente político, profundamente corporal

“não se faz com versos
não se faz com terços
não se faz com livros”

não se faz com o que se põe à prova, com o que cabe numa medida. um poema é sem medida. um poema tal qual aquela sensação de se nascer num beijo apaixonado ou como a de morrer na morte da esperança. o que nos resta, tudo isso que somos é só esperança, a espera pela aliança com o que virá, com o que já foi e não volta, mas está presente no que se reinaugura. o antes e o depois são amantes do agora. essa tríade incompleta que se arruma desde os olhos fechados, com as mãos abertas, desde o corpo estirado no que falta do chão e chega a um “quase-poema quase-política”, nascido das profundezas da dúvida que pode nos levar à ruína.

estamos em trevas. estamos no meio de um verso maldito, entre a suspeita perda da voz e a voz que tenta dizer, entre corpos que “não suportam mais o peso do mundo”. contudo, também somos o peso do mundo, somos as dores, esses corpos aflitos; somos a aflição de uma escolha sem escolha, da parede fria em nossa frente, uma aporia, a remoção de

“um povo sem nome
um povo sem data
um povo sem dono
um povo sem rumo
um povo sem deus
um povo sem homem
um povo sem povo”

a mais completa incompletude, aquilo que não nos ilude pela afronta de uma fronteira sem lume, mas, quem sabe, a permanência em se deixar irromper a fome na bandeira que hasteia nossa vontade de ser o soco e o estômago socado, a cara amassada pelos pés da truculência, o sangue vertido na terra que nos faz nascer a cada gota plantada, cada semente semeada mesmo durante a aridez dos abraços porque

“a luta política de um poema profundamente político
é pela (auto)destruição
do poeta santo do poeta limpo do poeta sonso
que de dia verseja e de noite
conta e canta
a publicidade fanática fascista
de seus tantos e tontos famigerados escândalos
em moderníssimas boutiques de conveniências
(panfletos do “bem viver”)”

andamos engasgados com tanta pele morta na garganta. um corpo em outro corpo, palavras sãs e insensatas na demolição da santidade de uma imagem que nos invade a contragosto, que nos releva até o desgosto da face traída por nossos próprios ouvidos. a degeneração corpórea durante o gozo, a percepção de que ser e não ser compõem uma existência própria, arquitetam a respiração do ar queimado nos pulmões.

cada poro aberto para a aspiração que nos elege desprovidos de nosso escaleno anseio, todas as coisas neste mundo, todas as realidades vigentes, inventadas e descartadas, integram o poema profundamente político, porque antes de político é profundo, porque antes de profundo é político, porque antes de poema é poema.

“um poema profundamente político é um poema sem poeta
um poema profundamente político é um poema da vida sem a mania da vida
um poema profundamente político é sempre profundamente demais
para a poesia e a política de um só rosto”

não há nó que amarre as voltas, idas e vindas do que sempre esteve desde a partida. partir significa estar presente no percurso; chegar significa estar presente no percurso. não há partida nem chegada. só há percurso.

a voz rouca de tanto gritar e elaborar ouvidos para acolher o poema que antes de ser poema é o silêncio tornado palavra. o silêncio cantado nas gentes incendiadas, nas caldeiras infestadas por anjos e bestas.

o poema, a palavra, que não é santa nem demônio, o poema que não é macho nem fêmea, “nem é negro nem branco nem azul nem amarelo”, que também “não é homo nem hétero nem bi nem tri nem tetra” ao mesmo tempo em que são todas as gentes, todas as cores, todas as dores.

um não alguém, um não poema, um não poeta, onde cada “não” se torna mais que negação por edificar o aberto do aberto, por tramar contra a certeza do certo, por ser a costela exposta do poeta, ao inserir um rasgo dileto em tudo que se defendeu na tentativa de tornar o que seja torto e curvo na maquiagem do que é reto.

não há retidão no verso: ele é profundamente político porque é profundamente poema, porque é profundamente o eco das gentes inscritas em seus nascimentos e mortes, porque morrer é um ato tão diário quanto nascer.

ficamos consagrados na canção que nos demove, que nos tira dos eixos porque somos envergadura para o desconcerto. os vazios, as inconsequências bem tramadas ou mal-arranjadas são material de poesia.

poema é coisa que não se mede, mesmo dentro da métrica. coisa mais irônica é essa de se medir os pés de um poema profundamente manco, quando profundamente ético e político (do grego éthos, que significa morada)

“porque um poema profundamente político
é um poema que grita no rasgo escuro das gentes
e o grito mais alto de um poema político
é a mais bela e a mais profunda e justa música de seu silêncio”

calamos diante da palavra que se torna ela mesma o maior gesto de uma existência, pois coisa mais poderosa não há. um poema não se restringe ao material escrito, a uma estética ou escola. independente do lugar que se tome para dizer um poema, o poema é o próprio lugar estendido do poeta, quando este não se restringe a quem faz imagens, mas se perde junto com o verso tornado seu seio. o poeta como lugar, o poema como morada, isso é profundamente político.

p.s. tomei posse do poema de andré monteiro, poeta e professor da universidade federal de juiz de fora, mas uma posse pelo diálogo, onde tentei uma travessia de vozes. não havia como não fazê-lo depois de lê-lo nesses tempos em que nos vemos assolados pela urgência de se pensar o político de maneira ampla, descentralizada de partidarismos. então, quero agradecer ao andré por ter escrito “como fazer (ou não) um poema profundamente político?” – presente no livro Cheguei atrasado no campeonato de suicídio, de 2014 –, assim como também agradeço a outro poeta, o carlos orfeu, autor de Invisíveis cotidianos , publicado em 2017, que por uma postagem no facebook me permitiu contato com o poema do andré. cada um, como pode, usa as armas que tem. as minhas são a arte, o amor, as palavras, o poema. abaixo, segue essa preciosidade escrita pelo andré monteiro, na íntegra:

Como fazer (ou não) um poema profundamente político?

um poema profundamente político
não se vende não se compra não se conta não se rende
não se ensina
nem sequer se insinua ao cacarejo político

um poema profundamente político não se faz com temas públicos
mas com temas impublicáveis
de corpos inauditos
corpos que dançam
no furo perplexo
da consciência

um poema profundamente político nasce
do orgasmo múltiplo inenarrável de incontáveis deuses
que se olham e se tocam e se beijam e se amam e se queimam e se jogam à vida

um poema profundamente político
não se faz com versos
não se faz com terços
não se faz com livros

um poema profundamente político não é um poema sobre a política
mas com a política do que não tem política e nunca terá
um poema profundamente político
é quase-poema quase-política
não tem receita poética
não tem receita política
tem a fome
de uma vida que se devora sem remédio

um poema profundamente político
não é um poema sobre o povo nem para o povo
e sim com o povo que nele se inventa e se sacode

um poema profundamente político nasce do desejo dos corpos do chão
quando não suportam mais o peso do mundo

um poema profundamente político nasce e cresce e corre e morre e nasce e morre
e renasce e recorre e remorre e remove
um povo sem nome
um povo sem data
um povo sem dono
um povo sem rumo
um povo sem deus
um povo sem homem
um povo sem povo

a luta política de um poema profundamente político
é pela (auto)destruição
do poeta santo do poeta limpo do poeta sonso
que de dia verseja e de noite
conta e canta
a publicidade fanática fascista
de seus tantos e tontos famigerados escândalos
em moderníssimas boutiques de conveniências
(panfletos do “bem viver”)

a luta mais radical do poema profundamente político
é pela (auto)destruição
do poeta cover que goza
com o típico cassetete do poeta alheio

um poema profundamente político não é macho nem é fêmea
não é negro nem branco nem azul nem amarelo
não é homo nem hétero nem bi nem tri nem tetra
não é careta nem moderninho
não é anarquista nem governista
não é de centro nem periférico
não é direito e nem é gauche
não é santo e nem é demônio
é redemoinho ferido de fúria

um poema profundamente político é um poema sem poeta
um poema profundamente político é um poema da vida sem a mania da vida
um poema profundamente político é sempre profundamente demais
para a poesia e a política de um só rosto

um poema profundamente político não é de deus nem do diabo
e nem do homem e nem da palavra
é a travessia roubada de um milagre sem santo

um poema profundamente político não é
definitivamente não é
um poema como este que se vê se lê se ouve agora aqui
porque um poema profundamente político
não dá bandeira não dá palavra
não dá ouvidos nem olhos
à minha sua nossa vossa sacola política
porque um poema profundamente político
é um poema que grita no rasgo escuro das gentes
e o grito mais alto de um poema político
é a mais bela e a mais profunda e justa música de seu silêncio