coluna palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
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naquela tarde, uma exposição. a canção das imagens no tempo analógico das vozes. vezes, quem sabe instantes, o convívio dos falantes. diziam o impacto das prisões, onde palavras eram privadas. a comunicação: encarcerada. e a gente viu essa imagem:

Sorry, Graham Bell. desculpe o incômodo. perdoe o mau jeito. mas é que a gente chega chegando. não pede licença. com dificuldade, tenta meter palavra mesmo. a seco. mas a gente não se ouve mais nas conversas. de repente, nem há mais conversas.
vozes cadeadas. linhas, limites, desafetos. não se fala nem mais do dia em que a gente acordou achando que o sol da manhã fora uma invenção da noite de ontem. naquelas horas, verdades eram arranjadas num esquema tântrico de mentiras.
Sorry, desculpe, deus me livre do dia em que a linha cruzou o caminho daqueles nomes. eram muitos destinos. a maioria desconhecidos. cada qual um casual encontro. até me lembrei daquele poema lido numa noite longa:
A DESCOBERTA DO MUNDO
Procuro alcançar-te
com palavras
com palavras
conhecer-te
como quem
com uma lanterna e um mapa
crê empreender
a descoberta do mundo
levanto-me
estou sozinha no escuro
com os dois pés
no cimento frio
(onde estás
no que escrevi?)
desculpe, Sorry, grato pelos pratos quebrados, pela lógica vencida. no cadeado, a fala interrompida. o disco travado. uma viga de aço enterrada no domínio simétrico do círculo. mas a gente tenta se alcançar com palavras e descobrir, e empreender, e crer na
descoberta do mundo. // mãos lançadas à sorte. um escolhido dentre desconhecidos. a gente não sabe quem são esses nomes, tão partes de nós quanto a página arrancada daquele catálogo em desuso. talvez, já estejamos nós também em desuso.
uma ligação telefônica. Sorry, Graham Bell por teu filho impreciso, mas é preciso te dizer: hoje não mais se usam fios. é tudo digital. ondas. a gente surta de informações, a gente se perde em tantos dados, a gente se prende ou se esconde
nessas
imagens
dramáticas.
ficamos descalços com os dois pés no cimento frio. estava escuro. ninguém mais dizia nada. tudo eram cadeados. o que se escreveu eram dúvidas. o que se disse, rupturas. Sorry, mas a invenção deu errado, Graham Bell. a gente não se aproxima do outro.
a gente só envia mensagens.
P.S. entre setembro e novembro deste ano, aconteceu no Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio de Janeiro, a exposição “45 anos de gravura”, em comemoração às quatro décadas e meia de trabalho da Anna Carolina Albernaz, gravadora, desenhista, ilustradora e professora de arte. eu fui. fiquei um bom tempo olhando essa gravura aí do texto, que é parte da série Sorry, Graham Bell, de 1975. resolvi andar por ela, e nessa andança topei com o poema “A descoberta do mundo”, de Ana Martins Marques, publicado em Da arte das armadilhas (Compainha das Letras, 2011). achei que, de certa maneira, cadeados e escuros dialogassem, assim como chão de cimento frio e telefones. talvez, no fundo, o que a gente queira com lanterna e mapa seja descobrir o mundo na procura do outro que a gente é e escreve. ou, talvez, o que a gente queira mesmo sejam as palavras.
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Anna Carolina Albernaz nasceu no Rio de Janeiro em 1943. É gravadora, desenhista e ilustradora.