por fábio pessanha
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prólogo
queria ter o pensamento organizado. saber o que fazer desde que levanto da cama. ir dormir no final do sono como se nunca tivesse dia. talvez não tenha mesmo. o constante desejo de traçar metas e cumpri-las. mas tudo não passa de um estratagema frustrado. então, resta a procura por uma explicação, a “de Miguel de José de João”.
provocação
que matemática é essa que corta o sol ao meio e deixa o dia pela metade? é como se dançasse com a parte que falta de um pé inteiro. talvez fosse ainda o milésimo de um dedo, decepado pelo lance rápido de um cotovelo. me pergunto como se gira de olhos fechados e como cada movimento gera um arpejo escaleno. cada pausa, a palavra que mete uma rasteira no recôncavo do mundo. um rio fluido engolido de margens. nelas têm espinhos.
acontecimento poético
quem sabe se ao se vasculhar o ensaio do engasgo algo valesse a pena? e, depois, empurrar ainda mais fundo o espinho mais fundo do mundo para compor um infortúnio. mais ainda, e se eu retirasse o tijolo do muro que separa aquele homem, o viúvo, dele próprio: um tumulto fortuito.
então, pela fenda da parede ferida, misturar-se-ia sua tristeza com a mais bela agonia de se haver coisa alguma que não apenas o “soluço e toda perspectiva”. um dia, talvez, livrar-se da melancolia e ser a espera que confia. a coagulação do tempo no instante em que se pare o filho não fecundo, que morto está antes de ter nascido, que morto nasceu antes de ser concebido. mas o viúvo jejua.
“perscruta as variações mínimas do vazio”. o luto de quem viveu a parte concisa de uma metáfora. o peso. a luta pela audiência mínima da escuta. o espinho. a dor que reage à inércia da pele quando o esforço de se perfurar ainda mais a carne salobra resiste como a clareza do que não se pode ver ao longe.
de dentro do passado o tempo é turvo, e a única coisa que sobra é o “espinho absurdo”, o mundo: o minuto que executa a pena de se viver durante 60 segundos…
… nessa eternidade confinada,
nela,
em luto,
o viúvo
“não pensa”…
P.S. alguns poemas deixam marcas. todos os poemas deixam marcas. nenhum poema deixa marca alguma. dessas premissas, nenhuma é verdadeira tanto quanto todas não são falsas. o que vale é o poema, nem sempre a crença. mas o poema acredita ou crê quem com ele medita?
o poema “Explicação de Miguel de José de João”, de Eucanaã Ferraz, tem dessas provocações. foi publicado no livro Sentimental (São Paulo: Compainha das Letras, 2012). mais que explicar, ele convida…
abaixo, o poema na íntegra:
Explicação de Miguel de José de João
O viúvo pensa que o mundo não passa de um tolo
absurdo, ele é o homem mais triste do mundo, seu
espinho é o mais fundo e tudo é prenúncio da morte,
de seu triunfo. Uma palavra antiga, lembra: infortúnio.
Entre ele, pensa, e tudo em volta haverá para sempre
um muro e depois do muro o que houver há de ser
fútil; onde está é o certo, no escuro. Uma lembrança
flutua sobre o tumulto. Talvez nem seja exatamente
pensamento o que pensa se o que pensa, parado,
não vasculha coisa alguma que não o próprio soluço
e toda perspectiva, num instante, coagula-se. Ter vivido,
pesa, não foi senão preâmbulo de sua condição viúva.
Convulsa, jejua, recapitula, murcha; perscruta
as variações mínimas do vazio, quando uns pontos
claros que se desenham sobre o fundo de seu luto
parecem vagos turvos como o passado vistos
dali, do seu pensamento, que sobre a dor e doer
se debruça. O mundo é um espinho absurdo,
cada coisa. Quer morrer; por um minuto, não
pensa.
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:: Fonte/imagem