PORQUE DÁ GUSTO FUGIR POR LOS CAMINHOS SELVAGENS DE LA POESIA – CHARLES BERNDT

|COLUNA LORCA
Por Charles Berndt

Hoje, gostaria de me aventurar pelos caminhos tortuosos e prazerosos da poesia. Para tanto, comecemos com a leitura de um poema, que será o mote dessa análise e a partir do qual começaremos nossa breve viagem poética:

aproveite bién las falhas del sistema
resiste, mano, en la región más desejada
confia en el fogo de la palabra
escribe com tu berga um bom poema

mesmo sin grana, tetas solo para ti, definición
venga a conocer el bosque y la graça
no acepte derrota como una carcaça
ainda puede ser tempo de flor y revolución

viver es una arte – nada a ver com escena – ou cinema
bocês es dono de su nariz y su destino
por que também debo bibir como um cretino?
escribe con tu berga um buén poema

aproveche bien la miel de las incertezas
e inunda com (teu) leche doce la noche y todas las tristezas[2]

(Douglas Diegues)[3]

Dentre todas as atividades exigidas de um crítico literário, de alguém que assume o desafio de ler e analisar literatura, acredito que a mais árdua e desafiadora seja a de analisar um texto poético, uma poesia. Para tal, é preciso mais do que uma simples e mera vontade de ”desvelar o texto” – um texto literário não pode ser simplesmente desvelado, decifrado, como se faz com uma equação matemática. Em terra de poesia, onde a linguagem é selvagem e se comporta como uma fera solta e indomável, se desejamos de fato realizar uma análise pertinente, só nos resta uma escolha: assumir que não é possível revelar a verdade de um texto, isto é, assumir que não estaremos a procurar o caminho fácil de uma única interpretação. Um texto, sobretudo os literários, pode dizer muita coisa, uma centena de coisas – tudo dependerá, obviamente, daquele que realiza a leitura. O leitor, assim, é a chave para a interpretação do texto. Dessa forma, o papel do crítico literário, mais do que buscar respostas, é o de levantar questões. A questão, a pergunta, o ato de questionar, de acordo com o que coloca o filósofo francês Maurice Blanchot nas discussões que realiza em sua obra intitulada ”A conversa infinita”, teria a capacidade de suspender as coisas, de abrir um mar de possibilidades, de alargar – pluralizar – as significações, as possíveis respostas. E é com estes olhos, os olhos de quem teme e foge de um lugar único e fechado, que o crítico deve encarar o texto literário, e deve fazer isso de forma ainda mais avassaladora e radical quando se trata de textos poéticos.

Dessa maneira, ”Lecteur paisible et bucolique”[4], já sabes que não pretendo desvelar a verdade do poema que escolhi para analisar, tampouco tenho a doce ilusão de achar que posso esgotar todas as coisas que podem ser ditas sobre esse texto. O meu trabalho, assim, será o de levantar questões, de suspender o mundo, sem procurar respostas e interpretações definitivas, procurando o que Blanchot chama de ”lugar de fuga”. Manter-se ”em fuga”, ou procurar o lugar da fuga, como sugere o autor, é justamente fugir, evitar, esse lugar da verdade inquestionável, da resposta definitiva, encerrada, concluída. Blanchot vai muito mais além e nos diz que a arte, acima de tudo, é o lugar da fuga, da descontinuidade, da impossibilidade de fechamento – em suma, focando no ponto que nos interessa, cabe dizer: a arte – seja ela literária ou não – é um lugar que não comporta uma única interpretação, é o lugar das múltiplas possibilidades e de todas as impossibilidades. A arte é, em seu maior grau, o lugar da dúvida. Desse modo, vale enfatizar, não é legítimo que o crítico literário seja convertido em um caçador de verdades inerentes ao texto, mas sim em um revelador de possibilidades, de caminhos possíveis, um navegador que não tem o mapa, mas que é capaz de imaginá-lo, sonhá-lo, sabendo que nunca chegará às Índias. Somos nautas sem um destino determinado. Mas, como diria Fernando Pessoa, na sua Mensagem, no famoso poema Mar Português, Tudo vale a pena se a alma não é pequena.

Assim, qual a primeira coisa que podemos dizer acerca do soneto de Douglas Diegues, extraído do livro ”Dá gusto desnudo andar por estas selvas”, e que está reproduzido acima? Talvez, diante desse texto, o que a maioria dos leitores perceba de imediato seja o fato de ter sido escrito no que se costuma chamar de ”portunhol”. Ou, talvez, ainda, esse ”portunhol” só salte às vistas ao longo da leitura do soneto. Seja como for, é clara a presença de duas línguas, o português e o espanhol. O que também salta às vistas, pelo menos às minhas, são os imperativos presentes no soneto de Diegues. O ”eu-lírico” inicia o poema dizendo-nos ”aproveite bién las falhas del sistema”. Trata-se de uma ordem, um mandamento, ou talvez uma sugestão: aproveite! Seja como for, penso que é possível associar esta primeira frase à razão pela qual o texto é escrito em ”portunhol”. Não seria este soneto de Diegues uma espécie de justificativa – ou ordem, ou sugestão – para que se escreva desse modo, lançando mão de palavras de duas línguas distintas? Ou, pensando de um modo mais radical, podemos pensar que este primeiro verso estaria a levantar uma questão que me parece primordial: até que ponto o português e o espanhol distinguem-se completamente, até que ponto essas duas línguas não se embrenham uma na outra? O poema segue: ”resiste, mano, en la región más desejada/ confia en el fogo de la palabra / escribe com tu berga um bom poema”. Os imperativos, como vemos, continuam presentes: resiste, confia e escribe. A região mais desejada, talvez, possamos imaginar, seja a própria poesia, a linguagem poética, para recorrermos à terminologia criada por Jakobson. Talvez, ainda, essa ”región más desejada” possa ser, também, o próprio lugar de indefinição no qual se insere a poesia de Diegues: a fronteira, o entre-lugar, o local de passagem. Essa fronteira, esse espaço ambíguo e indefinido, torna-se visível pelo uso do portunhol, isto é, do ”hibridismo linguístico”. E é o uso do verbo resistir (”resiste, mano”) que parece reforçar essa ideia: resista na região mais desejada, resista na fronteira, no entre-lugar, na indefinição, e porque não dizer no lugar de fuga, indo ao encontro do pensamento de Blanchot? Ao mesmo tempo, parece haver certa ironia nesta frase, afinal, quem gosta de permanecer na indefinição, considerando o fato de que durante séculos a humanidade procurou os lugares de estabilidade, as definições, as certezas, as verdades, os refúgios (e não a fuga). Na verdade, não seria parte da própria natureza humana a busca pelas certezas, pelas definições, pela morte das questões? Foi desta forma, e é assim até hoje, que se criaram as identidades, tanto as identidades coletivas, nacionais, como as individuais. Toda a filosofia ocidental, pós-socrática, eu diria, baseia-se no princípio do centramento do sujeito, na busca por uma identidade fixa e acabada. Assim, se realmente acreditarmos que o soneto de Diegues defende – justifica, sugere ou legitima – o uso de uma língua de fronteira, o portunhol, podemos notar que há certo tom irônico, na medida em que o eu-lírico sabe que a ”região mais desejada” não é a fronteira.

O que eu ainda não disse, no entanto, é que mais do que legitimar o uso do portunhol, a meu ver, o soneto de Diegues tem uma função meta-textual, na medida em que reflete acerca do fazer poético. Isso pode ser verificado no próprio, obviamente: ”confia en el fogo de la palabra/ escribe com tu berga um bom poema”. Confiar no fogo da palavra e escrever fazendo uso do pênis, o que isso pode significar? Desde o início desta análise, eu tenho frisado e reforçado a ideia da indefinição do texto, apoiado, sobretudo, nas teorias pós-estruturalistas, que defendem o pluralismo do sentido texto literário, em que o leitor, em seu encontro com a palavra, é quem constrói sua própria interpretação, através da experiência que adquiriu em sua vida, e também em outras leituras. Sendo assim, confiar no fogo da palavra, como nos sugere o soneto de Diegues, pode significar essa indefinição do texto, e da linguagem. A linguagem é algo completamente ambíguo, é, por assim dizer, o lugar da dúvida, e como coloca Blanchot, é na arte que a linguagem assume o seu grau maior de descontinuidade, de pluralidade. O fogo pode ser, sim, o exemplo de algo que nos escapa, que não pode ser totalmente controlado. O fogo é disseminação, é algo que se perde e que não sabemos direito de onde veio e para onde vai. A palavra, a linguagem – e por que também não a poesia? -, vista sob esta óptica, é algo incontrolável, indeterminado, que não pode ser totalmente apanhado, decifrado. Por fim, escrever com a ”berga”, o pênis. Através dessa imagem, o soneto parece estar querendo nos dizer algo como: escreva ejaculando, gozando, sem controlar totalmente as tuas palavras, que saem de ti como o esperma – se a palavra é fogo, de fato ela não pode ser totalmente controlada. Mas, ao mesmo tempo, se a ejaculação é algo ”incontrolado”, símbolo do descontrole, ela não acontece sem estímulos, sem a ajuda de mãos, ou corpos, isto é, trata-se de algo ”semicontrolado”, ou, no mínimo, desejado, planejado.

Ao dizer que o soneto de Diegues possui um caráter meta-textual, também podemos dizer, em minha concepção, que, além de refletir sobre o fazer o poético, esse texto parece propor uma nova forma de escrever poesia. E essa nova forma está em diálogo com as teorias e correntes de pensamento que ganharam força e espaço nos mais variados campos do saber, a partir da década de 1960, sobretudo. Esse soneto, e também outros textos escritos por Douglas Diegues, me parecem estar em diálogo com as ideias e discussões tecidas por estudiosos como o já citado Maurice Blanchot, mas também outros nomes, como Derrida, Foucault, Deleuze, e o próprio Nietzsche. Não há espaço, aqui, para dialogar e problematizar com as ideias de todos esses pensadores, mas penso que, de algum modo, todos eles, em muitos de seus textos, buscaram refletir sobre a necessidade de se construir novas formas de pensamento, distanciando-se das velhas concepções que afirmavam e buscavam verdades universais, e passando a valorizar a dúvida, a relativização das interpretações – porque é isso o que a verdade é, uma interpretação. Esse pensamento influenciou os estudos e a crítica literária, fazendo da linguagem, da literatura, um lugar ambíguo, fronteiriço, indeterminado, fluídico e muito mais necessário. Se antes os críticos buscavam as verdades do texto, as relações com a realidade, por exemplo, agora eles passam a valorizar as questões, desfazendo hierarquias e dando espaço para outras formulações, vendo o texto como algo fluídico, recheado de incertezas, que só são resolvidas pelo leitor – de uma maneira grotesca, podemos dizer que toda essa nova forma de pensar a verdade, a linguagem, e por conseguinte a literatura, acabou de dar cabo da crítica biografista e da autoridade suprema do autor.

Desse modo, retomando, ao propor uma nova forma de escrever poesia, o soneto de Diegues parece estar evidenciando a necessidade de se pensar o mundo a partir da fronteira, a partir do que não é rígido, do que é híbrido e não é, em nenhuma medida, puro ou fixo. O soneto de Diegues problematiza tudo que se pretende como determinado e definido – voltamos ao início da análise: ao ser escrito em portunhol parece estar a dizer que não existem fronteiras firmes e inquebráveis entre o que entendemos como língua portuguesa e língua espanhola. Poderíamos, inclusive, ir mais longe e ver o quanto a própria concepção de português e espanhol são idealizações, construções discursivas. E aí está uma palavra importante, a meu ver: desconstrução. O soneto de Diegues não estaria falando de desconstrução? Desconstrução de linguística, nacional? Desconstrução da ideia de linguagem, e também de fazer poético e artístico? Sim, acredito que o texto, diante dos meus olhos, está a falar de tudo isso. O que ele falaria diante dos olhos de outra pessoa? Eu não sei. Mas com certeza, haveria de ser algo diferente. E mesmo se muitas ideias e interpretações se aproximassem, haveriam diferenças e outras formas de lidar com o discurso, com ”el fogo de la palabra”.

Confesso que o meu propósito, inicialmente, era analisar o soneto de Douglas Diegues verso por verso, contudo não farei isso. Talvez, sim, eu devesse proceder desta forma, devesse disseminar sem pena nem peso na consciência o discurso que me toma e que  neste momento vejo sair de mim, mas sinto-me relutante em voltar a dizer coisas que já disse mais de uma vez. Penso que voltaria, inevitavelmente, às ideias e reflexões já levantadas anteriormente.

Outrossim, hei de me debruçar sobre mais alguns pequenos detalhes do soneto selvagem de Diegues. Notemos: ”ainda puede ser tempo de flor y revolución”. Novamente, o texto, a meu ver, toca questões relacionadas ao fazer poético e à necessidade de se pensar e discutir a descontinuidade, a ambiguidade, os hibridismos – sobretudo os culturais –, as certezas e ideias tidas como verdade absoluta. O ”tempo de flor” é uma alusão à primavera, que em nossas consciências será sempre um tempo fértil e benéfico. A palavra ”revolução” representa o florescimento de uma nova ordem, de uma nova maneira de se viver e pensar – nova maneira de se escrever também! -, estando, por sua vez, relacionada a tudo que já dissemos, à ideia de desconstrução, sobretudo.

Nos dois últimos versos do soneto, novamente, vemos a palavra ”aproveitar”, em sua forma de imperativo:  ”aproveche bien la miel de las incertezas/ e inunda com (teu) leche doce la noche y todas las tristezas”. O mel das incertezas – é disso que tenho falado desde o princípio, do mel da dúvida, da ambiguidade, do que não é domesticado nem concluído – O mel ou o fel? Eis a dúvida. De qualquer forma, podemos pensar no mel da fronteira, do entre-lugar, o mel da fuga, é isso o que beberemos se escolhermos este caminho: incertezas. Este ”miel de las incertezas” é, também, o próprio a língua (não-língua) na qual o soneto de Diegues é escrito. De que lado da fronteira está o portunhol? Em que lugar de Portugal, ou do Brasil.  termina o português e começa-se a falar espanhol, seja este espanhol o da América Latina ou de Espanha? Não sabemos, não temos de definir, as fronteiras que dividem e separam as coisas em duas partes só existem em nossa imaginação e em nossas leis. Assim, as incertezas, repito, são muito mais produtivas, prolíferas e sábias do que as certezas. A última frase do soneto parece trazer novamente a imagem da ejaculação. Penso que podemos pensar nesse ”leche” como algo que pode ser associado não só ao esperma, mas ao próprio leite materno, afinal, é dele que nós nos alimentamos nos primeiros tempos de vida e é ele símbolo de fertilidade, de saúde, de renovação, de (re)nascimento. Mas este leite, contudo, não é qualquer leite, é o ”(teu) leche doce”, isto é, o leite daquele que lê e que está sendo convidado a sentir prazer, a escrever. Novamente, vale dizer que o soneto parece defender uma nova forma de fazer poético e está incitando o leitor a lançar mão dessa forma de escrever e pensar. Mas que forma é essa? Essa forma, para mim, é a forma da dúvida – ou da fuga. É o fugir desnudo pelas selvas, esta é a forma. Diegues parece transmitir isso muito bem, basta que tenhamos atenção, neste soneto, ou nos outros que compõem o seu livro, ”Dá gusto andar desnudo por estas selvas”. A própria forma dos poemas denuncia a sua ambiguidade, o seu caráter duvidoso, incerto, que não se deixa apanhar por nenhum dos lados, que pisa várias terras, formas e ideias, sem se demorar por elas, sem se fixar, sem se deixar decifrar, domesticar. Existe forma mais fixa do que um soneto? No entanto, os sonetos de Diegues são fixos? São sonetos que nos falam e nos fazem pensar, a todo momento, sobre o quão o mundo é misturado e heterogêneo.

Por fim, a mim me parece que o soneto de Diegues está, dentre muitas outras coisas que  ainda podem e devem ser consideradas, nos convidando para aproveitar/resistir/confiar/escrever/viver/inundar nossas vidas, nossos textos, nossas reflexões – acadêmicas ou não – com o leite das incertezas, ressignificando a nós próprios, os outros e tudo o que nos cerca. Talvez, seja um convite para desconstruir certos muros que muito nos fizeram mal, e substituí-los por coisas menos duras, coisas que precisam ser descobertas e reinventadas, como o próprio ”portunhol”, utilizado por Diegues em seus sonetos selvagens. Talvez, mais do que nunca, o texto de Diegues que procuramos analisar aqui seja um convite à fuga, um convite para que saiamos de dentro de nossas cavernas de concreto e fujamos desnudos por estas selvas, sem ter de continuar a ”bibir como um cretino”, com medo da noite e do leite doce que há de chover sobre nossas cabeças e tristezas.


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[1] O título de nosso texto, seguindo a estética do poeta Douglas Diegues, também é uma mistura de português e castelhano.

[2] Poema extraído do livro ‘’Dá gusto andar desnudo por estas selvas’’ (2003).

[3] Douglas Diegues é um poeta, nascido no Rio de Janeiro, e que vive em Campo Grande e em Ponta Porã, no Paraguai. Escreve no que chama de portunhol selvagem, uma interlíngua, que é uma mistura de português, castelhano e guarani.

[4]Primeiro verso do poema ”Epigraphe pour un livre condamné”, de Charles Baudelaire, presente no livro ”Les Fleurs du Mal”, publicado pela primeira vez em jornal, em 1861.


:: Referências

BLANCHOT, Maurice. O pensamento e a exigência de descontinuidade, em A Conversa Infinita (vol. 1): A palavra plural. Tradução de Aurélio Guerra Neto, SP: Escuta, 2001, pp. 29-39.

BLANCHOT, Maurice. A questão mais profunda, em A Conversa Infinita (vol. 1): A palavra plural. Tradução de Aurélio Guerra Neto, São Paulo: Escuta, 2001, p. 41-61.

DIEGUES, Douglas. Dá gusto andar por estas selvas. Sonetos Selvagens. Curitiba: Travessa dos Editores, 2002.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução de Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes Dias, Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976.

DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença, Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995.  212

______, A farmácia de Platão. Tradução de Rogério da Costa. São Paulo:Iluminuras, 1997.