|coluna palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
Escrever como fuga Escrever como animal que foge da morte Escrever
como a morte que busca a própria sentença Escrever como a escrita
que quer escrever e escreve sendo a força do soco o gemido do tapa a ferida
no corpo caído o buraco do tiro na nuca Escrever como o ácido
queimando a pele o destroço do que fica sem ossos pra levantar o dedo e pedir
mais uma rodada Escrever como beber o delírio das noites de uma vida inteira como
as manhãs perdidas nos lençóis amarelos de tanta porra expelida
Escrever só para me livrar
de escrever.
Escrever sem ver, com riscos
sentindo falta dos acompanhamentos
com as mesmas lesmas
e figuras sem força de expressão.
A necessidade por mais um texto a ser escrito como a dor imprecisa que dói
nos talos do corpo nas taras da forma
sem figuras das metáforas sem força das imagens sem sal O gosto
insosso do poema sem poesia do desafio sem fio sem corda
para amarrar no pescoço ou sem as mãos trancadas para espremer a última
gota dessa palavra que cisma
em ser verso do verso que cisma em ser linha da música
que se presta à falta de harmonia
Mas tudo desafina:
o pensamento pesa
tanto quanto o corpo
enquanto corto os conectivos
corto as palavras rentes
com tesoura de jardim
cega e bruta
com facão de mato.
Mas tudo quanto afina a ferocidade da crina
solta ao relance do vento faz tecer a crença de uma orgia onde o corpo está cerrado
em roupas onde a voz está no peso da fala
engasgada naquela palavra detida na palavra que sobra
no verso que procura a tesoura cujo corte cego afia a demanda por mais um trago
de poema na cesura que falha pelo excesso do poema
que é mais ou menos a palavra que era rente e foi limada que está no prelo do martelo
Mas a marca deste corte
tem que ficar
nas palavras que sobraram.
Qualquer coisa do que desapareceu
continuou nas margens, nos talos
no atalho aberto a talhe de foice
no caminho de rato.
A encolha no canto no cubículo do verbo dá quase a entender
o comprimento do abalo o cumprimento do ralo em receber
a sobra do poema mal escrito As margens da marca as calhas da faca ou
seja lá do que se usou para cortar as parcas palavras de um poema excessivo cheio
de arestas embolado de restos de rotas de rasos estranhos caminhos por onde
sobra a falha do verso na palavra pendurada do lado de fora do poema
Escrever a escrita do poema que falha na própria falta que excede
no zelo em ser o filho gerado no joelho o embuste o aparelho
que funciona sem botão ou pentelho sem acessório
nem som Escrever a sina de ser um poema sem poema sem corpo
ou morfema sem ninguém para dizer que o poema está uma merda
P.S. A partir do poema “Sem acessório nem som”, publicado em Cabeça de homem (Nova Fronteira, 1991) aqui chegamos. Topei com esse poema do Armando Freitas Filho e ele dizia o que eu sentia. Poemas têm dessas coisas… falam nossos silêncios e expõem nossos vazios… Quando vi, estava nele… costurando uma conversa ou fazendo outra coisa que não sei o nome.