coluna palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
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atentei ao calendário com as horas mortas na pedra e as acolhi com o seu peso. o tempo dos segundos escorria para dentro das mãos. as águas nelas mergulhavam a fim de aprisionar o crepúsculo nos dedos. lento como o fogo das marés era o desafio de calcular um nome e prender o sentido na semântica do seu corpo. um corpo antigo e grávido de novidades. era a hora de seu triunfo ante a cólera dos afagos. as janelas encerravam o mais das vezes de uma parede aberta para seu fim. buscava o chão entre seus trincos. revelava a idade no corpo de um menino sem antiguidade. prostrado. diante da vontade de se agarrar na vertigem dos braços e estes se alongarem até os joelhos. circundarem os próprios cotovelos. a nudez do corpo deitado no chão escorado por sua cabeça. a “crepitação das cabeleiras” num solavanco que leva o corpo para o lado de fora da casa. para a parte de dentro do que é fora da casa. do que é mundo nesse pedaço de costela encontrado entre os caninos do beijo dado em sua testa antes de partir para o delírio de um ventre sem gravidez. sem prever a posição dos astros, chove a intensidade dos ventos culminados no umbigo de outro corpo e se promove a seguinte persistência:
compreender o desespero das formas:
sentir sede e não saber o nome da água.
lamber a queda dos calendários:
desenhar o desejo da língua
no gosto seco de tempo.
o tamanho da boca é proporcional ao despreparo da mordida. não se cumpre a demanda formal sobre a sede tampouco a compreensão do feitio incorporado ao tempo. a língua lambe a fala para entender de horizontes. talvez seja um desmonte sobre a arquitetura do que é tempo no lapso do espaço. quem sabe ainda um pretexto para dizer a “nudez própria a todas as coisas”. há quem tenha medo de tirar a roupa e tatear a pele. há quem não se olhe no espelho. há quem busque no estranho o apelo de se enxergar na cegueira. há quem tire a roupa do medo e tateie os escrúpulos da pele porque se vê melhor no escuro. há quem tenha a esperança de herdar o sigilo dos quartos quando o fechar e o abrir não fizer diferença aos olhos. dentro da madrugada os amantes se percebem. se o momento é feito de carne e toque também o silêncio encarna a morada do gesto. a procura pelo eixo orgânico da escuta. o deleite pelo que foi derramado e já não volta. a mudez do enigma.
queria eu ter as palavras nas mãos e trancafiar todos os verbos que não entendo. deixá-los sozinhos à procura da “raiz dos nomes” a fim de fundar uma “linguagem elementar”. queria eu segurar as próprias mãos e evitar que procurem outras para a sanidade das têmporas. queria eu reter o dilúvio com as pálpebras para que o choro do meu corpo se decomponha em mil pedaços sem gesto. queria eu querer a mim mesmo em vez de torcer para que os outros de minha ignorância me achem. queria quem sabe escrever um poema e dizer a itinerância das vagas ao quebrarem em meus tornozelos. a única coisa que sei fazer certo é não fazer nada direito. preciso dos poemas do mundo atravessados em meu corpo e chegar ao destino deste diálogo. escrever errado como se tropeçando os pés no peito. como se correndo da minha própria sombra para extingui-la de vez ante a obstinação de enterrar o sol no céu durante as várias idades da noite.
P.s. Aqui se fez uma pequena tentativa de diálogo com poemas de Lucas Rolim, poeta de Teresina (PI), autor de O Mirábolo (Editora Moinhos, 2017), editor do selo Kizumba Edições, por onde editou Os Cantos de Eleanor (2017), Terrário (2017) e O Caderno Surrealista de Ibán (2018). Sem muitas regras no jogo, o jogo foi não ter regras mesmo. Escrevi isto que talvez seja um brevíssimo ensaio poético, uma leitura que toma posse, que faz corpo com a poesia em sua incontornável maneira verbal de ser. Embora não esteja no momento com o livro do Lucas nas mãos, topei com seus poemas em algumas revistas virtuais. Passei pela escamandro… fui lendo e acolhendo, até chegar à Triplov. Houve também uns encantamentos com o que encontrei na dEsEnrEdoS, até finalmente esbarrar na Agulha Revista de Cultura, onde também é possível ler uma entrevista do poeta a respeito de poesia. Dadas essas voltas, escrevi este texto que tenta ser o que gosto de fazer: uma performance dialogante, no caso, com a poética do Lucas. Tentei aqui um poema que não é poema, quem sabe, uma tentativa de querer ser poema. Mas não dá certo, talvez por isso funcione. Não sei.