|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
… de quando com seriedade pergunta a voz feminina do poema: “Quem amaria um homem sincero?” – a ousadia de elevar a demolição ao estatuto de ruína enquanto se tem um lugar afetivo muito próprio, uma posição exercida e que ainda antes de tal pergunta enaltecida diz o poema com anunciação explícita: “Se quisesse piedade, pediria”. com isso talvez se possa pensar não haver compaixão enquanto coisa adquirida e que a verdade não seja apenas. não seja a pena aplicada por se fazer o julgamento da mentira.
… de quando o poema exime os pulmões do fôlego a fim de provar o gosto do remédio lancinante, e delegar o amor “pelos ódios da sua dor” seja uma incompletude plena. quem sabe seja esse o ritmo cadente de cada gente recolhida no poema e que na leitura feita possamos nós leitores ocupar o mesmo espaço dessa vida. mas isso seria piedade e se assim fosse, como já dito, se precisasse pediria. ou talvez “Se pudesse atacar, tentaria”. e se acometeria contra a dor com toda a vontade, com a certeza de que o assalto não falharia, de que ao fracasso não se destinaria. trairia sem dúvida, ou assim o faria para que a distância não se propusesse, que não se fizesse o itinerário do poema ao tentar dizer a verdade com a verdade.
… de quando o desejo por tomar seu corpo sobre os joelhos fosse mais forte e se impetrasse o orgulho esculpido nos estilhaços espalhados pelo chão. “sua ficção. Talvez poema” que vem propor a distância da noite entre as estrelas, a luz da lua esticada nas águas durante o reflexo da voz que diz “sou seu espelho”. e assim seja propagada a fome; o desejo e o delírio; o ensejo e o arbítrio do abismo fundado sobre si enquanto tenta um dialeto ínfimo ao esconder do verbo ou palavra a língua despertencida.
… de quando o poema fala. de quando o poema “trava uma canção longínqua” com a dúvida de se amar um homem sincero e buscar nisso o bálsamo onde “o remédio é mais amargo”. onde a voz se diz “à margem esquerda da frase”. onde o masculino se perde no feminino e o feminino no masculino. onde haja imersão completa. onde a palma da mão seja o mapa dos corpos se fundindo na querência ficcional do “seu narcisismo partido” e assim talvez o poema seja o que nele se queira além de uma verdade.
… de quando o poema nos faça devorar com ousadia e sejamos tal qual a voz que arranca e traz para perto o coração que ao longe se apresenta. que a distância seja o desafio de se ruir constâncias desse coração pelo fetiche imaterial do azul. que a coragem diga seu nome e nos interponha a dúvida de se perguntar por um alguém que ame um homem sincero. seríamos todos nós sinceros. seríamos todos nós a desconfiança pela sinceridade diária. seríamos todos nós a voz que pergunta.
… de quando o poema fala por um eu travestido de cores. um eu que se torna mais que as dores do dilema de amar um “homem sincero” enquanto, claro, se quer traí-lo. um eu que é meio, dentro ou quase, embora isso piore tudo, eu sinto. eu sei e “se não sentisse, diria”. e do meio do abraço sofrido entre mãe e filho se figure outra esfinge, outra pietà que segure a dor e o amor de todos os amores gerados entre a imagem e a ficção que sou diante de tantos olhos. a intimidade nossa, “o nosso carrapicho”.
P.S. como quase sempre acontece, o poema me segura e eu vou junto sem muito perguntar por onde, sem querer saber se o texto vale, se a concordância está boa, se a língua me deixa ser com ela. o poema que me provocou foi o “Outra pietà”, de Marcos Siscar, publicado na revista Inimigo Rumor, nº 20 (7Letras / Cosacnaify, 2008) e depois em seu livro Interior via satélite (Ateliê editorial, 2010). também figuraram por aqui alguns lances rápidos do poema “invernáculo”, de Paulo Leminski, publicado em Toda poesia (Companhia das Letras, 2013). abaixo, os poemas citados:
Outra pietà
Se quisesse piedade, pediria. Se pudesse atacar, tentaria. O remédio é
mais amargo. Que me ame pelo que me atribui, pelos ódios da sua dor.
É claro que tento traí-lo. Quem amaria um homem sincero? Se ou-
sasse, eu o tomaria sobre os joelhos, arrancaria seu coração distante,
comeria seu coração azul.
Sou seu espelho, sua ficção. Seu narcisismo partido. Talvez poema.
Sei que pioro as coisas. Sinto por isso. Se não sentisse, diria. Minha
intimidade é o nosso carrapicho
invernáculo
Esta língua não é minha,
qualquer um percebe.
Quando o sentido caminha,
a palavra permanece.
Quem sabe maldigo mentiras,
vai ver que só minto verdades.
Assim me falo, eu, mínima,
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
Esta não é minha língua.
A língua que eu falo trava
uma canção longínqua,
a voz, além, nem palavra.
O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase.