|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha
costumo me demorar na leitura de livros de poesia. em mim os poemas elevam lugares, tornam-se outros poemas, ensaios, ideias; propiciam outros pares. isso que escrevo é um esboço, como tudo que a gente escreve é. tenho muito apreço por rascunhos… às vezes vingam, às vezes fogem, às vezes… são erros. de uma leitura em trânsito, nasceu essa dança com o poema “sublimação”, de calí boreaz… sigamos a música… e que a gente se perca… tomara!
em seu livro outono azul a sul (urutau, 2018), calí trouxe uns azuis diferentes, uns matizes atlânticos. há poetas que trazem perdições em seus caminhos para que nesses desvios possamos nos encontrar… ou talvez ficarmos ainda mais perdidos. algo de boreal há em seu nome, e acredito que ao nome se entrega a falência dos lugares-comuns, coisa que nem sempre a gente percebe. no caso da calí, também uma efervescência entre imagens e palavras, ritmos, uns silêncios bem sonoros, que aguçam a corporeidade do que antes era frase e se torna poema.
fortes em sua poética são a transiência, a transição, os lugares tecidos ao tempo, as rotas que se mi[s]tificam, o itinerário como constância sólida para o devir. o tom vívido dos ocasos aumenta sua paleta de cores na composição de um espaço muito próprio. do azul ao sul, do laranja outonal, proliferam-se multiplicidades para mais adentro das estações; e nem sou eu quem diz isso, tampouco a poeta luso-carioca, mas a voz imagética de seu poema, que se mistura nela ante a esquizofrenia necessária à sua transitividade:
sublimação
eu sou a intérprete das canções perdidas
a capa dos romances amachucados
o trilho interrompido do trem desesperado
sublimado em perfume de uma tragédia antiga
eu sou o ser que ama sem ser amado
o ser último e primeiro da Terra
de mim nascem todos os papéis penetrados por poemas
todas as serenatas e todas as guerras e todos os lemas
todos os exageros e todos os segredos
todos os medos e todos os nervos
tudo o que chora e que demora ou é de repente
todos os erros e acertos são meus
e amo meu amor ausente com o mesmo desapego de deus
(eu sou o dia em que eu não mais direi eu sou)
como ato etéreo de passagem, a sublimação se torna mais um lugar na cartografia de calí boreaz. creio que muito se engana quem atribui ao eu a legitimidade do que se diz, pondo-o como detentor de decisões e vontades. mais como um ponto crítico em que espaço e tempo se ambiguizam, o eu seria como uma imagem que se reinventa, talvez uma recolha do que simultaneamente passa e fica, ou ainda a ilusão na agregação entre sensações, pensamentos e desejos, como já disse octavio paz em A busca do presente e outros ensaios (Bazar do Tempo, 2017).
no poema acima, creio que a imagem foi certeira. sublimam-se as certezas, as vozes, as vezes em que se pretende sarcasticamente uma certificação datada. a cada vez que o eu se diz, o instante, o tempo se [es]vai, e voa a ilusão de um espaço, que na verdade é contíguo com o que insistentemente se refaz em “canções perdidas”, “romances amachucados”. a interrupção do trilho, mesmo dentro de uma afirmação, é já um desafio ao que é dado e certo. interromper é sempre trágico, e a maior tragédia do eu talvez seja sua incompletude. o eu seria talvez o lugar do meio num caminho, o próprio caminhar, apesar de todo clichê que se pese nessa imagem.
a indefinição que marca os pronomes “todo” e “tudo” no poema da calí são signos de travessia dessa sublimação. reforça-se o evidente para que o latente se sobressaia. mas, ainda assim, impossível é permanecer numa rota linear. de norte a sul, de sul a azul, a ampulheta equilibra a areia no tempo de sua evasão, na medida em que tudo aquilo que demora é de repente. o instante abre o poema para sua configuração transitiva. por mais que se tente reforçar a completude, esta só se torna plena ao trazer junto a indecisão do trajeto. o amor como ausência é potencialmente presença. mais concreto que qualquer simbologia material, tátil; no poema, o amor se mostra vigente quanto mais dele se põe distante. evoca-se a malícia de um divino em que se cria a vidência cega da apatia.
o espaço se reconfigura no vazio, que se transmuta na possibilidade de senti-lo por dentro do desapego de deus. imagem essa que mais uma vez reforça a transitoriedade, pois o apegar-se pode ser lido como o afeiçoar-se, como amparo; uma vez que este não quer dizer apenas proteção. amparo diz também abandono, porque é no abandono que podemos ouvir nossos silêncios, nossos outros, a ponto de nos ampararmos. tanto que na poética de manoel de barros encontramos:
Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam
a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!
(O abandono me protege.)[1]
a sublimação diz esse lugar quase inacessível mediante um lapso abrupto, metaforizada na ultrapassagem das vias comuns enquanto corrupção do itinerário físico. ambivalente, o sentido transitivo é reforçado, quando se conjuga a aceitação do que é pleno em sua imensidão e do que coage a ficção retilínea entre os estados físicos da frase comum. incorpora-se fluidez ao poema, muito embora se listassem personificações de um eu sub-reptício, o que se evidencia proposital mediante o destino do último verso – ou frase final entre parênteses –, quase como uma recolha confessional.
feito à imagem da linguagem como ritornelo infinito, eis o looping que aprisiona os desavisados na armadilha sensual da palavra. morre-se incessantemente tanto quanto se revive o eco diário em que o tempo entre o azul e o sul, trilhado de poema em poema, obtém aqui outro de seus cumes. o “dia” como marco crucial dessa encruzilhada em que se atravessam a decisão de ser e não ser por um estranho e uníssono verso, avidamente enlaçado pelo “eu sou”. eu sou o dia, a marca, o instante, o tempo em que não mais direi eu sou. uma artimanha verbimagética que detém a compreensão do impossível, coisa que o poético pode conceber. com a maior cara de pau do mundo e de posse desse poema boreal, é possível dizer: eu sou o instante, aquela hora marcada em que deixarei de ser o que sou. leitor, poema e poeta se consubstanciam.
pela negativa – “não mais direi” –, empreende-se a assunção dessa fala que prima pelo calar-se. deixar de dizer seria dizer ainda mais forte. seria impregnar-se da assimetria harmônica do poema, que diz não dizendo, que corrói o eu em suas abstenções pessoais. pelo trânsito, esse eu poemático ocupa os corpos de cada um que chega ao azul de todo sul, quando sul é mais que ordenação cardeal. talvez seja o destino de cada leitor incorporado ao poema; e o poema, então, se refaça como jornada ao instante de cada paisagem dessa viagem, ao se compor a sonoridade de um verso no exato momento em que ele se extingue.
P.s. essa breve leitura que fiz do poema “sublimação” compõe uma das muitas possibilidades de caminhos para se chegar ao impossível. nenhum poema é lido com o intuito de se contornar a estiagem de suas rotas, prementes na largura dos seus temas. eis apenas um itinerário, um absurdo, que até faz sentido num livro cuja jornada (em seu amplo sentido poético-filosófico) se densifica e se reconstitui em cada laço azul de fita amarrada.
[1] Trecho do poema “Desejar ser”, de Manoel de Barros, presente em Livro sobre nada (1996).