“VOCÊ NUNCA VAI SABER” ESSE POEMA DE PAULO LEMINSKI – FÁBIO PESSANHA

|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha

eu te digo com a verdade de todas as invenções do mundo que a saudade é um equilátero difuso, que a vontade de uns minutos travessos são avessos à simetria de um poema profundo. eu te digo, te falo que o tempo entre um alô e um boa noite está entre os maiores mistérios dessa vida, que o hoje é tão instante que o agora se faz outrora. a gente sabe que as coisas ditas num poema são para a eternidade dos versos não escritos. a gente desconfia que o sujeito seja o maior dos objetos. a gente se encanta com o espelho embaçado depois de um banho quente e demorado. a gente quer ser o “objeto sujeito” desse poema que se escreve a cada verso, feito entre a cama e o meio-dia. daí, te digo como a maior mentira de todas as verdades:

 você nunca vai saber
quanto custa uma saudade
o peso agudo no peito
de carregar uma cidade
pelo lado de dentro
como fazer de um verso
um objeto sujeito
como passar do presente
para o pretérito perfeito
nunca saber direito

você nunca vai saber
o que vem depois de sábado
quem sabe um século
muito mais lindo e mais sábio
quem sabe apenas
mais um domingo

você nunca vai saber
e isso é sabedoria
nada que valha a pena
a passagem pra pasárgada
xanadu ou shangrilá
quem sabe a chave
de um poema
e olha lá

o objeto é sujeito. foge à regra e não dá jeito de se enquadrar na gramática, assim como a fuga antes de um amém, só para dizer absurdos que não cabem numa manhã litúrgica de domingo. nunca mais se repetirão as palmas para o alto dos muitos céus que revoam sobre nós. acima desses céus, os sóis de cada dia que a saudade encarna na antinomia daquela viagem desfeita. “você nunca vai saber” a gravidade do silêncio, “o peso agudo no peito” depois de transitar a esmo pela cidade das ruas em eclipse.

o que digo é outra coisa. não escreva nem ponha na mesa esse “objeto sujeito”. o desafio está em carregar uma cidade pelo lado de dentro de um corpo com alma em aviso prévio, tal qual o verso feito sem muito jeito, que vai embora a qualquer momento. instante é esse tempo eterno no presente. nem pretérito dá conta, o quão perfeito seja, ou talvez imperfeito. o agora, esse dilema.

você não sabe o sábado que fica depois que o metrô vai embora. os trilhos cortam a cidade numa metáfora para os encontros tramados, ou aqueles furtivos casos… que fazem o dia amanhecer mais demoradamente em corpos embaralhados.

[…]
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo,
não passa de caricatura
[…]

nessas entrelinhas, nas curvas e sonhos, “quem sabe apenas / mais um domingo” se apresenta na paleta das horas, cuja presença dura o ínfimo necessário ao traço que perdura nesse desenho ou na desenvoltura do que passa como cara, feito gesto: caricatura. um domingo apenas, mais um, quem sabe, ou ainda um dia que não prevê a décima quinta sinfonia dessa melodia que confunde o sábio ou apenas retarda o máximo da saudade para o próximo minuto em que seu preço se faça tarde.

você não entende, nem “nunca vai saber / e isso é uma sabedoria”. esse transe, esse trânsito, essa transa. uma foda amalgamada no sabor do que se sabe só de olhos fechados. não é preciso ter razão para entender as coisas, basta incorporá-las, fazer volume no sangue que corre nesse corpo sem veias.

todo lugar é trânsito no destino para o qual não se sabe onde. é mesmo uma sabedoria poder concorrer com o lado de fora do que foi dito ou ser o desejo de pálpebras adormecidas. não acordar pela necessidade do alarme, mas pela inutilidade plena do poema. porque o que vale, o que vale a pena, é perder a chave no meio do problema. nem “pasárgada / xanadu ou shangrilá”. o que quero é estar sujeito como objeto. sentir o poema dentro da lembrança do dia em que sentei sozinho no meio da rua, à procura do verso que coubesse nessa fechadura. essa busca já demora um século ou se refaz num sábado de inverno, e olhe lá… você nunca vai saber…

P.S. o poema “objeto sujeito” foi publicado em distraídos venceremos, última obra poética de Leminski, publicado em vida pela Brasiliense, em 1987.[1] também compôs essa nossa dança um trecho do poema sem título, que começa pelos versos “leite, leitura”, presente em o ex-estranho, livro póstumo com seleção e organização de Alice Ruiz e Áurea Leminski, publicado pela Iluminuras em 1996.[2] de tantas vezes que repito, acho que até já acredito: a gente nunca sabe um poema. o que fazemos é experimentá-lo, experimentar seu corpo em nosso corpo, até que chegará o dia em que se fará tanta poesia, que “ainda vai ter poesia um dia” (caprichos & relaxos, editora Brasiliense, 1983). mas, de verdade, isso é uma coisa que a gente nunca vai saber.

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[1] Informações presentes na antologia Toda poesia, de Paulo Leminski (Companhia das Letras, 2013).

[2] Idem.